Máscaras, ventiladores, viseiras criadas em impressoras 3D, vacinas, processos de investigação e respetivos resultados… Tudo isto está e vai continuar a ser recolhido, contextualizado e catalogado pelo Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto . O objetivo? Construir “A história da Covid-19”.

A vivência, o efeito que opera em nós e as reações à pandemia são, obrigatoriamente, ditadas pelo contexto em que cada um a está a viver. Como o ensaísta espanhol José Ortega y Gasset já dizia: “O homem é o homem e a sua circunstância”. E não é possível considerar o ser humano como sujeito ativo sem levar em conta tudo o que o circunda. Sendo a sua formação um dos fatores cruciais para este entendimento. Para além da esfera da cidadania, que todos partilhamos, um curador de museu sabe medir a temperatura aos acontecimentos que se vão sucedendo à sua volta. Sabe detetar os sinais e agir.

Rita Gaspar, curadora das coleções de Arqueologia, Etnografia e Antropologia biológica do MHNC-UP estava atenta, não só aos acontecimentos, mas também à reação a eles. À adaptação da sociedade civil a este flagelo coletivo. “Enquanto profissionais que preservam a memória, os curadores por todo o mundo sentiram logo este impulso de constituição de coleções que marcassem o momento e contassem esta história. E em Portugal não foi diferente”.

Os objetos que vão contar a história da Covid-19

“Começámos a assistir às respostas da sociedade civil”, nomeadamente “com a produção de elementos de proteção individual, incluindo os que estavam em falta para entrega aos hospitais”. Em paralelo, também o tecido empresarial alterou as suas rotinas para poder reagir às necessidades que se reinventaram, desenvolvendo equipamentos para os centros hospitalares e para a sociedade civil.

“É importante guardar esta memória”, garante a curadora do Museu, “registando desde as máscaras sociais que foram feitas em casa até à empresa de cotonetes que alterou a sua produção para zaragatoas em tempo record e em articulação com a academia, ou o centro de investigação que desenvolveu os testes rápidos”.

Desta recolha fazem parte equipamentos de proteção individual como máscaras caseiras, viseiras criadas em impressoras 3D, máscaras que permitam a comunicação entre a comunidade surda, projetos dentro da academia e em articulação com o mundo empresarial que produziram os materiais em escassez (testes e cógulas são apenas alguns exemplos), dispositivos desenvolvidos pela academia, por startups e pelo mundo empresarial, soluções médicas e tecnológicas, assim como os materiais de comunicação produzidos e disseminados pelo Gabinete de Comunicação e Imagem da U.Porto.

Claro que, de vacinas a ventiladores, há ainda muito a recolher. Está a construir-se um repositório, o mais completo e diversificado possível.

Abrir a memória à comunidade

O passo seguinte será trabalhar a divulgação deste acervo, e “contar a história deste episódio, em si, já histórico, através de iniciativas de âmbito diverso, nomeadamente exposições, ou outros eventos. Pretendemos também disponibilizar este acervo à comunidade científica e académica, para a realização de estudos e trabalhos de investigação”, acrescenta a curadora do MHNC-UP.

De resto, diz Rita Gaspar, um pouco por todo o mundo, os museus foram fazendo este registo. “Uns mais focados nos diários dos confinados e nos desenhos das crianças enquanto repositório da apreensão social do momento”, outros ainda, “nos desenvolvimentos médicos ou tecnológicos”. Mesmo sem um “repto organizado nacional ou internacionalmente”, o certo é que se assistiu a “um movimento orgânico e natural de registo deste momento único”.

A Faculdade de Engenharia da U,Porto (FEUP) está igualmente a proceder a esta recolha, neste caso, “mais focada na documentação resultante dos processos de investigação e dos projetos desenvolvidos pela Faculdade”.

Trata-se, no fundo, de “salvaguardar as evidências materiais desses processos de investigação e seus resultados para memória futura”, explica Susana Medina, responsável pelo FEUP Museu, atenta também a outras iniciativas internacionais como a Rapid Response Collecting, de que o Victoria & Albert Museum é precursor, e que se dedica à recolha de objetos que surgem como reação a um determinado momento da história recente e que são alvo de discussão social ou política.

Como tudo aconteceu…

Foi há praticamente um ano. No centro do furação que todos vimos eclodir, encontrava-se o Vice-Reitor para as áreas da Investigação, Inovação e Internacionalização da U.Porto. Pedro Rodrigues deparou-se com “uma situação de emergência para a qual a sociedade não estava preparada e foi nesse sentido que tivemos de encontrar respostas”.

Numa primeira fase, procedeu-se à recolha junto das Unidades Orgânicas (UO) e dos Centros de Investigação (CI) de luvas cirúrgicas, batas, proteção de calçado, fatos de proteção integral, viseiras, zaragatoas, toucas e proteção ocular, ou seja, material necessário aos hospitais centrais, nomeadamente o São João e o Santo António.

“Era equipamento utilizado nos CI e UO para dar aulas e fazer investigação.” E foi assim que, de repente, a Casa Comum (à Reitoria da U.Porto) se transformou num verdadeiro armazém de recolha de material. “Arrastou-se o piano para dar espaço aos caixotes que guardavam todo este equipamento de que os hospitais tanto necessitavam”.

Numa segunda fase, e porque os pedidos não cessavam de chegar, passou-se à produção de viseiras, conseguindo abranger não só os Hospitais de Santo António e São João, mas também o Pedro Hispano, em Matosinhos, o Santos Silva, em Gaia, para além de alguns centros de saúde.

“Chegámos a conseguir enviar mais de 6.000 viseiras”, recorda Pedro Rodrigues. Para a produção destas viseiras de proteção individual recorreu-se às impressoras 3D existentes nas faculdades e nos centros de investigação.

Entre as muitas solicitações, começou a emergir com evidência a necessidade, não só da zaragatoa usada nos testes à Covid-19, como também do tubo e do próprio liquido onde é introduzida. O seu meio de transporte. Assim, a Faculdade de Farmácia e o I3S deram início à respetiva produção para hospitais e diferentes locais que faziam os testes à população. Em simultâneo, o i3S passou a realizar análises às amostras enviadas pela ARS Norte para deteção do coronavírus SARS-CoV-2.

Em simultâneo, a Universidade foi-se mobilizando para a participação em projetos de investigação relacionados com a pandemia, motivada com ferramentas de financiamento lançadas pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).

Foi deste “posto de comando”, em que se transformou o gabinete do Vice-Reitor Pedro Rodrigues, que saíram as instruções para a identificação e recolha dos objetos que vão permitir ao MHNC-UP contar esta história da Covid-19. Junto daqueles que foram, no fundo, os “players” fundamentais da resposta que vai entrar para a História.

Herança para o futuro

Para a Vice-Reitora da área a Cultura, “os museus têm uma responsabilidade a cumprir em relação à comunidade do futuro. Os artefactos que estamos a guardar permitirão contar histórias de criatividade, resiliência e solidariedade, para além das que se prendem com as descobertas científicas”.

Fátima Vieira acrescenta que “é desta forma que colocamos o MHNC-UP no centro da vida da comunidade: fazendo-a sentir que é também a sua memória que preservamos.”

Da equipa do secretariado aos motoristas, da Cultura ao Desporto, das unidades orgânicas aos centros de investigação, toda a comunidade académica, numa comunhão de braços, deu o seu contributo no encalce daquela que é, como Alberto Caeiro lhe chamaria, “A espantosa realidade das coisas”. E a história da Covid-19 ainda agora começou a ser contada…