Os corvos de Birkenau, poema de João Luís Barreto Guimarães, funcionou de estímulo criativo ao novo trabalho de Helder de Carvalho, que ficará patente, até 31 de junho, à entrada do complexo partilhado pelo Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) e pela Faculdade de Farmácia da U.Porto (FFUP).

Universalmente conhecido como Auschwitz, Birkenau foi o campo de extermínio onde foram executadas mais de um milhão de pessoas. É agora um espaço onde o silêncio pode ser insuportável e o vislumbre do esquecimento um ultraje. “Não há odor a queimado (nem gritos sob o silêncio)”, escreve João Luís Barreto Guimarães. “Na plataforma puída ninguém aparta ninguém”. Até as “câmaras de gás (hoje / um monte de ruínas) podiam passar a ideia de que / nada se passou.” São os corvos que “vestem de negro para não deixar esquecer. Sobre a erva que renasce (e faz / por cobrir o passado) os corvos velam a morte / colhendo provas de vida/ (restos de biologia:)/ sementes/ vergonha/ aqua lacrimae”.

Helder de Carvalho recorre a cores densas e pesadas, ao ocre e ao negro, para resgatar os gestos que gritam na memória coletiva. Aos corvos concedeu a elasticidade da borracha, um material que aqui assume uma “plasticidade que pretendeu explorar” e a possibilidade de dar à peça a “durabilidade” pretendida.

Em termos cromáticos, a opção por cores mais soturnas pareceu-lhe a mais adequada, conjugada com a possibilidade de experimentar novas técnicas. “O processo criativo é o que dá mais prazer”. Pelo caminho ficaram ainda “muitos desenhos até chegar até aqui… Estamos todos a ensaiar e quase nada é definitivo”.

(Foto: U.Porto)

“É importante não esquecer os erros do passado”

O artista decidiu interpretar este poema neste local em específico pelo seu paradoxo. Ou seja, pela prioridade que, neste complexo, se atribuí à saúde e à vida. Outro motivo prendeu-se com o facto de o autor, João Luís Barreto Guimarães, para além de ser um multipremiado poeta, ser também médico e responsável pela Unidade Curricular de Introdução à Poesia e Medicina, integrada no plano de estudos do Mestrado Integrado em Medicina do ICBAS.

Numa altura em que assinalamos os 50 anos do 25 de Abril, “é importante não esquecer os erros do passado”, sublinha a Vice-Reitora para a área da Cultura e Museus da U.Porto. E neste contexto, Fátima Vieira lembra que “são os corvos, vestidos de preto” que nos recordam “o que aconteceu e não pode voltar a acontecer”. Neste local, “o diálogo entre a poesia e a arte torna-se muito potente” e se o objetivo do escultor foi “desassossegar, eu diria que é impossível passar-se aqui sem se ficar a pensar”, conclui.

“Somos todos autores na interpretação de um poema”, recorda por sua vez o diretor do ICBAS. Henrique Cyrne Carvalho sublinha a importância da introdução de novas competências que se traduzem num “reforço do conhecimento” para “uma comunidade académica que é cada vez mais diversa”.

Sombras que não quero ver é um projeto que pretende levar aos vários espaços da Universidade intervenções artísticas do escultor Helder de Carvalho, com o objetivo de interpelar a comunidade académica e fazer-nos refletir sobre uma variedade de questões sociais.

(Foto: U.Porto)

Sobre João Luís Barreto Guimarães

Nasceu em junho de 1967. Formou-se em Medicina no ICBAS e, no quinto ano da especialidade, decidiu ir para Nova Iorque (no fatídico setembro de 2001) aprender no melhor centro de cirurgia plástica reconstrutiva – o Memorial Sloan Kettering Cancer Center.

Poeta e tradutor, é médico de Cirurgia Reconstrutiva no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho. Desde 2021, é também o responsável pela Unidade Curricular de Introdução à Poesia e Medicina, integrada no plano de estudos do Mestrado Integrado em Medicina do ICBAS.

Publicou 12 livros de poesia, muitos dos quais foram já traduzidos para outras línguas. Os primeiros sete estão reunidos em Poesia Reunida (Quetzal, 2011). Seguiram-se: Você está Aqui (Quetzal, 2013); Mediterrâneo (Quetzal, 2016), vencedor do Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, em 2017, e do Willow Run Poetry Book Award 2020; e Nómada (Quetzal, 2018), ao qual foram atribuídos o Prémio Livro de Poesia do Ano Bertrand e o Prémio Literário Armando da Silva Carvalho.

As suas obras mais recentes incluem O Tempo Avança por Sílabas (2019) e Movimento (Quetzal, 2020), livro com que conquistou o Grande Prémio de Literatura e, em 2022, venceu o conceituado Prémio Pessoa. Já em 2023, lançou Aberto Todos os Dias (Quetzal, 2023).