Quem desce a rua do Almada, mesmo antes de virar a esquina para a rua de Ramalho Ortigão, sabe que aquele pode ser um dia de sorte. Pode estar na vidraça alguma das mais recentes criações do mestre, ou pode até, o próprio estar, naquele momento, a fazer nascer uma nova obra… A partir de 16 de dezembro, quem subir a escadaria principal do edifício da Reitoria da Universidade do Porto, já pode aliviar a sombra da incerteza e avançar de espírito robustecido. Vai mesmo encontrar, no Salão Nobre do edifício, um retrato de Agustina Bessa-Luís, Sophia de Mello Breyner Andresen e Eugénio de Andrade, feito pelo mestre António Bessa.

São os “meus poetas”, confessa o autor. E nem queria acreditar quando encontrou uma fotografia, a preto e branco, dos três. “Sempre andei em busca dos meus poetas. Vagueavam muito no meu imaginário”. E não só encontrou, finalmente, uma forma de retratar os três, unidos, como poderia fazê-lo resgatando-os à sua juventude. Uma imagem que não abunda entre escritores.

O quadro oferecido à U.Porto baseou-se num retrato de Agustina Bessa-Luís, Sophia de Mello Breyner Andresen e Eugénio de Andrade enquanto jovens. (Foto: DR)

“Encontramos sempre os poetas já envelhecidos. Parece que nunca foram novos”, desabafa. E é também neste esforço de inversão do sentido do estereótipo que “os seus poetas”, ainda jovens, serão eternizados, no Salão mais Nobre da U.Porto.

A obra já foi exposta na Bienal Internacional de Arte de Gaia, esteve para ser comprada, mas a vontade do mestre não era vender. Queria que “os seus poetas” tivessem outra sorte. Que fossem colocados num sítio “onde várias pessoas os pudessem ver”. Daí ter decidido oferecer o quadro à Universidade do Porto. E ficou “imensamente feliz”, por saber que o quadro iria ser colocado no Salão Nobre, ao lado de tantas figuras ilustres que marcaram a história da instituição.

Não só a vida e obra de Sophia de Mello Breyner Andresen têm fortes ligações à Casa (através do Jardim Botânico e da Galeria da Biodiversidade – Centro Ciência Viva), como Agustina Bessa-Luís e Eugénio de Andrade foram doutores Honoris Causa pela Universidade do Porto.

Uma montra virada para a rua

Há mais de 30 anos que é no número 314 da rua do Almada que António Bessa dá lastro à criatividade. Até encontrar este espaço (que era um antigo supermercado russo) tinha o atelier mais abaixo, mas faltava-lhe sentir a flutuação da rua. Chegou até a pintar um olho na caixa do correio, como quem convida a espreitar.

Fomos encontrá-lo, já no final de uma tarde chuvosa, entre tintas e pinceis, a ouvir Schubert (Ave Maria) e a pintar o quadro de José Saramago. A escuridão da rua a contrastar com as cores a explodir da paleta do mestre António Bessa. O quadro era para oferecer a Pilar del Río, o que já não vai acontecer porque a filha do escritor, ao saber da obra, fez logo a reserva. E lá terá de pensar noutro trabalho para oferecer à antiga companheira de vida de Saramago.

Mestre António Bessa. (Foto: DR)

Gosta que o atelier seja uma montra. E de deixar a porta aberta. Desta forma de comunicar com quem passa, mesmo enquanto está implicado no processo criativo. Não raras vezes, quando dá conta, tem grupos de pessoas coladas ao vidro, ou já dentro do atelier, a acompanhar-lhe o gesto. É um caminho partilhado. Muitos portugueses, mas também turistas que identificam o retratado. Aconteceu-lhe com José Saramago: “os nossos poetas são mesmo do mundo”. E também enquanto fazia o retrato de Agustina Bessa-Luis, Sophia de Mello Breyner Andresen e Eugénio de Andrade. “As pessoas passavam na rua e identificavam os poetas. Era pretexto de conversa”.

Um aluno livre na ESBAP

Estava ainda na escola primária quando as brincadeiras “à Indiana Jones” o levaram a descobrir bem mais do que, no momento, poderia imaginar. Ao explorar uma gruta, encontrou um objeto que, pela curiosidade que despertou, lhe viria a traçar o destino: um pedaço de carvão. Surpreendia-se com o que “aquele pedaço de carvão podia produzir numa superfície”.

Entrou na Escola Superior de Belas Artes do Porto (precursora da Faculdade de Belas Artes da U.Porto) graças ao Professor e artista plástico Júlio Resende. Queria ter acesso a algumas aulas, obter conhecimentos. “Falei com o Júlio Resende e entrei como aluno extraordinário. E foi extraordinário. Fui um aluno livre!”

As encomendas alimentam o ciclo e desde a descoberta do pedaço de carvão que não tem parado de desenhar. É do que vive. Até hoje.

Para realizar uma visita orientada à galeria de retratos do Salão Nobre, basta fazer a inscrição para [email protected]