Sophia e o nome das Coisas – Pensamento e obra de Sophia de Mello Breyner Andresen é o título do mais recente livro publicado pela U.Porto Press e que resulta do congresso internacional organizado pelo Instituto de Filosofia da Universidade do Porto, através do grupo de investigação Raízes e Horizontes da Filosofia e da Cultura em Portugal.

Da influência de Ruy Cinatti e Teixeira de Pascoaes ao desassossego das viagens… Da escrita para crianças ao encontro da poesia lusófona, da forma justa e autentica da palavra à filosofia existencial de Heidegger, Sophia e o nome das Coisas – Pensamento e obra de Sophia de Mello Breyner Andresen estabelece um dialogo transversal com o pensamento da escritora.

Sem desalojar a obra da literatura, pretendeu-se pensar Sofia de Mello Breyner Andresen numa relação com a Filosofia, mas não só. Maria Celeste Natário, professora da Faculdade de Letras da U.Porto (FLUP) e diretora da linha de investigação Raízes e Horizontes da Filosofia e da Cultura em Portugal, explica que se quis “olhar Sophia 100 anos depois”, estabelecendo “um diálogo com diversas formas do conhecimento”.

A infância resgatada ao estado de menoridade

Numa “intima relação com a curiosidade”, e sem menorizar o discurso, alerta a docente, Sophia dedica uma atenção muito especial à escrita para crianças e jovens. Tiago Aires, autor do artigo Sophia: a antologia como encontro de cultura(s) recorda o Primeiro livro de Poesia (poemas em língua portuguesa para a infância e adolescência), publicado em 1991 pela escritora, que nos diz  que”A cultura é feita de exigência. Por isso afastei o infantilismo, o simplismo. Uma criança é uma criança mas não é um pateta”.

Foi também um livro de “iniciação”, afirma Tiago Aires, “ao mundo da poesia lusófona”. Uma espécie de antologia “como não havia ainda sido publicada entre nós” e que “desde então, não teve continuação”.  Com os programas atuais do ensino secundário limitados a autores portugueses, esta “antologia” continua a ser fonte única de contacto com a poesia lusófona e com estas culturas com as quais partilhamos a língua portuguesa. Neste esforço de dar voz a poetas de vários países de língua oficial portuguesa, Sophia reuniu, num mesmo livro, poesia brasileira, timorense, angolana, cabo-verdiana, santomense, guineense e moçambicana. Como se pode ler no prefácio escrito pela própria, tentou “destacar o que há de particular e o que há de universal em cada povo”.

Tiago Aires salienta ainda a aposta da escritora na “importância da cultura na formação do ser humano”. Um caminho orientado pela “luta contra a injustiça e a demagogia”, em busca “da liberdade e da democracia”, ou, como a própria escreveu, no poema “A forma justa”: “Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco/ E este é o meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo”. Nesta escrita de literatura para crianças, diz o autor, Sofia laminou o “poema para todos”. Iluminando o caminho ao “acesso democratizado e livre à cultura”.

O esplendor da presença das coisas

Aquilo que leva o ser a falar, o “deixar dizer” e o “deixar ser” foi o caminho trilhado no artigo intitulado Sophia e Heidegger, uma arte poética. João Maria Carvalho refere-se à poesia como um lugar de aparição. À poesia, diz-nos Heidegger, “devemos a fundação, em palavra, do ser”. O “dizer do poeta” surge como a “faúlha do fogo do ser” que nos “alumia” e “aquece o existir”.  Puxando o lustro ao “esplendor da presença das coisas” de que nos fala Sophia. Este “deixar ser”, para Heidegger, é o “deixar-aparecer”, o “deixar que o ente aconteça” na “sua plenitude”. É, no fundo, a essência do construir. “Sophia leva a cabo, na palavra entre as palavras, o advento”. Como nos diz na Arte Poética V: “Pensava também que, se conseguisse ficar completamente imóvel e muda em certos lugares mágicos do jardim, eu conseguiria ouvir um desses poemas que o próprio ar continha em si”.

Um lugar de aparição que, no fundo, não inventa nada que já lá não esteja. Tal como Miguel Ângelo já dizia fazer com as estátuas que apenas extraia do bloco de pedra. O seu trabalho seria, assim, o de, “com mão rigorosa”, resgar as estátuas “do seu ocultamento”. Assim faz o poeta com as palavras. “O seu dizer fá-las emergir do seu lago de lodo”, qual “escafandrista que encontrou a mais antiga das pérolas”.

A poesia como “uma arte do ser”

Sophia surge-nos de “dentro” do próprio universo. Podemos até dizer que “ela é também universo”, ressalva Maria Celeste Natário. E é nesse sentido que o pensamento da escritora “vive impregnado de uma clara luta pela busca de um sentido”, numa aceção que nos leva até ao pensamento existencial em que Heidegger concebe a linguagem como algo que “persegue o real” e a poesia como “essência da linguagem”, interpretada como “casa do ser”. Em Arte Poética III, Sophia escreve “Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. (…) E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem “.

Sophia fala-nos de “existencialidade e do ser”, sublinha Maria Celeste Natário, daí que possamos interpretar a sua poesia como “uma arte do ser”. “Pede-me antes a inteireza do meu ser”, escreveu Sophia a propósito da poesia, “uma consciência mais funda que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar”. Um olhar que vai “para além da superfície do real” acrescenta a docente da FLUP, no seu artigo intitulado Poesia e Sophia: caminho no passeio, rente ao muro, mas não caibo na sombra. É nesta capacidade de “sentir a ausência dentro dos homens”, continua Maria Celeste Natário, que a sua poesia se associa à tarefa da metafísica de “captar essa ausência”, de tornar o inacessível “próximo (como diria Eduardo Lourenço)”, de um “dizer inaugural” ou de um  “poetar pensante de Heidegger”. Num exercício de aproximação à verdade que “em Sophia é o real”.

O mar de Sophia e o Mar(ão) de Teixeira de Pascoaes também coincidem neste “sentido maior que cada um pensa encontrar na unidade”, assim como o tema das viagens, tão presente na obra da escritora, entendido como “procura” e “sombra da viagem física”. A proximidade a Heidegger é, de resto, sugerida pela própria escritora numa carta a Jorge de Sena, esclarece Celeste Natário, em entrevista ao Notícias U.Porto.

Como a própria Sophia de Mello Breyner Andresen escreve em Arte poética III, “Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno. É apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor”.

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