São 69 ilustrações que Aurélia de Souza realizou para a revista Portugália, em 1899, e vão ser apresentadas ao público, pela primeira vez, em Aurélia de Souza. Inéditos, a preto e branco, título da exposição que vai estar patente, a partir desta quinta-feira, 15 de setembro, na Galeria II da Casa Comum (à Reitoria) da Universidade do Porto.
Inserida nas comemorações do centenário da morte de Aurélia de Souza, esta exposição constitui uma oportunidade única para conhecer uma parte pouco conhecida trabalho da antiga estudante da Academia Portuense de Belas-Artes (antecessora das atuais faculdades de Arquitetura e de Belas Artes da U.Porto) e uma das artistas mais marcantes do país, e especialmente do Norte, na passagem do século XIX para o século XX.
Para além dos trabalhos de Aurélia de Souza, até agora preservados no arquivo do Museu de História Natural e da Ciência da U.Porto (MHNC-UP), os visitantes encontrarão ainda cerca de 30 peças de Figurado de Barcelos, provenientes de uma recente doação ao MHNC-UP, que também se expõe pela primeira vez.
O maravilhoso domínio da luz e da sombra
No final do século XIX, a ilustração assume uma importância e um protagonismo que é visível nas publicações científicas, como é o caso da revista Portugália. Daí que o coordenador, o etnógrafo Rocha Peixoto, tenha contratado “colaboradores artísticos” com formação na Academia, para ilustrar os seus artigos. Entre eles estava Aurélia de Souza, que tinha sido colega da sua sobrinha Clotilde da Rocha Peixoto, na Academia Portuense de Belas Artes. A artista produz estas ilustrações a aguarela, preto e branco, em 1899, antes de uma viagem que realiza a Paris.
“É possível que a opção de as realizar a preto e branco esteja relacionada com o processo de publicação no final do século XIX”, afirma Rita Gaspar, curadora das coleções de Arqueologia, Etnografia e Antropologia biológica do MHNC-UP. As ilustrações foram integradas num artigo de cariz etnográfico, sofrendo apenas uma redução.
Na revista, as ilustrações aparecem agrupadas por temas e é assim que as vamos encontrar também na exposição, ou seja, com a orientação proposta por Rocha Peixoto, incluindo as respetivas indicações para impressão.
“O maravilhoso domínio da luz e da sombra que caracteriza Aurélia de Souza traz a estas ilustrações uma tridimensionalidade que nos permite imaginar de imediato o objeto cerâmico original”, acrescenta a curadora.
O trabalho de bastidores
Uma a uma, todas as ilustrações que vamos ver passaram pelas mãos de Ana Freitas. Realizadas a grafite e aguarela sobre papel, encontravam-se em bom estado de conservação e a intervenção centrou-se na “limpeza mecânica superficial, na planificação de vincos, na atenuação de manchas provenientes de adesivos, na consolidação de pequenos rasgões e no reacondicionamento”, explica a conservadora-restauradora do Serviço de Gestão da Documentação e Informação (GDI/UP.Digital).
A manutenção dos aspetos históricos das peças e o “princípio da intervenção mínima”, foram as linhas orientadoras do restauro. Ana Freitas explica que “a exposição de obras de arte em papel obedece sempre a critérios bastante específicos, nomeadamente no que diz respeito aos níveis de iluminação a utilizar e aos valores de humidade relativa e temperatura do espaço expositivo”.
Outro fator de preocupação são os próprios “materiais utilizados na construção das vitrinas. Por serem espaços fechados, poderão constituir fontes de acumulação de gases poluentes que acabam por danificar os objetos nelas expostos”. Todos estes aspetos foram tidos em consideração sendo que, para a exposição das ilustrações dentro das vitrinas, “foram construídas, manualmente, bases em cartão museológico isento de ácido seguindo o formato, por vezes irregular, dos desenhos”, acrescenta Ana Freitas.
A “olaria do Prado” de Aurélia de Souza
Nas ilustrações que compõem a exposição encontramos a representação de animais, domésticos ou imaginados, cenas do quotidiano rural e alguns apontamentos religiosos que nos remetem para a música, tão presente nas comunidades agrícolas. Há também figuras com algum destaque na sociedade (como o soldado), mas também aquelas que são alvo de chacota (como o engenheiro das estradas). Tal como as temáticas que encontramos no figurado de Barcelos, Aurélia de Souza representa na pintura as cenas do quotidiano, às vezes com uma certa ironia, como é o caso do autorretrato com Laço negro.
As ilustrações do figurado de Barcelos (designado como “olaria do Prado”) produzidas pela artista portuense, e pela irmã Sofia, no final do século XIX, são frequentemente referidas pelos investigadores como um exemplo da atividade enquanto ilustradora. O figurado é, assim, o tema central deste trabalho de Aurélia.
Rocha Peixoto, um dos mais importantes etnógrafos à época, trabalhava também a arte popular e a encomenda “terá sido no sentido de ilustrar as temáticas mais comuns nestes brinquedos (apitos), que se encontravam nas feiras. Ora representando cenas do quotidiano, ora ironizando com alguns elementos da sociedade”, explica Rita Gaspar.
Como chegaram até nós
As ilustrações só chegaram à Universidade do Porto bem mais tarde, por doação de Bento Carqueja, que dirigiu o Jornal O Comercio do Porto. Para além de ter sido docente da Academia Politécnica e da Universidade do Porto, esteve também ligado à revista Portugália e à fundação da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnografia (SPAE).
Bento Carqueja doou as ilustrações da Portugália à SPAE, acervo que, mais tarde, passa para o Instituto de Antropologia da Faculdade de Ciências da U.Porto. Atualmente as ilustrações da Portugália encontram-se no arquivo do MHNC-UP.
O figurado de Barcelos que acompanha a exposição
As temáticas representadas nas ilustrações estão também materializadas por algumas estatuetas de barro policromadas e pertencentes, maioritariamente, à recém incorporada coleção de Alexandre Alves Costa. As peças de barro surgem nesta exposição como introdução ao imaginário popular representado por Aurélia de Souza a preto e branco.
Esta arte popular, produzida no final do século XIX como produto secundarizado que preenche os espaços vazios das fornadas das louças utilitárias vendidas nas feiras, sofre uma alteração de imagem nesta transição para o século XX. Os acabamentos em vidrados verdes e castanhos são substituídos pela policromia (verdes, azuis e vermelhos). A função, no entanto, mantém-se. O apito incorporado em cada peça envia o objeto para o universo lúdico da infância.
A inauguração de Aurélia de Souza. Inéditos, a preto e branco está marcada para as 18h00 do dia 15 de setembro.
Depois deste momento inaugural, a exposição ficará patente ao público até 10 de dezembro de 2022, podendo ser visitada de segunda a sexta-feira, das 10h00 às 13h00 e das 14h30 às 17h30, e ao sábado, das 15h00 às 18h00. Encerra aos domingos e feriados.
A entrada é livre.