De uma paixão de Alexandre Alves Costa e Sergio Fernandez, que nasceu por volta dos anos 1960, resultaram duas das mais importantes e extensas coleções do figurado de Barcelos. São mais de 600 peças, agora doadas ao Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto (MHNC-UP) pelos dois arquitetos e antigos estudantes e docentes da Faculdade de Arquitetura da U.Porto (FAUP). A cerimónia acontece no próximo dia 25 de maio, às 10h00, na Biblioteca do Fundo Antigo, ao edifício histórico da Reitoria.

Bichos de esgares macabros que não sabemos se alguma vez existiram, santos despojados de ornamentos supérfluos e representações de momentos comuns da vida quotidiana são algumas das facetas que dão corpo às duas coleções que são também o trabalho de uma vida, ou neste caso, de duas vidas. Foram décadas à procura das raízes de uma manifestação artística que o regime salazarento não deixava ressoar. “Tesouros” que ficam agora para as futuras gerações.

No mesmo atelier, mas numa sala ao lado “da bicharada”, por cima do estirador de folhas amplas e linhas retas, projetos em que um dos arquitetos estaria a trabalhar, a contrastar com a sobriedade do preto e branco da sala, impunha-se a presença de um grande cavaleiro amarelo! “Este é para oferecer à minha filha”, resguardou Alexandre Alves Costa.

A família, a arquitetura, a história do país, a consciência política, a amizade e a paixão pela olaria… Está tudo aqui. Houve um percurso feito de curiosidade, de sentido de justiça, de tendência para o belo e de afetos. A vida que se foi desfiando e os trouxe até aqui. Quilómetros de viagens que se fizeram de feira em feira. De fornada em fornada. Tudo para conseguir agarrar aquela peça, antes que outro apaixonado a levasse. Às vezes, mesmo antes de ficar pronta. Pelo caminho, ficaram histórias de reis e presidentes. De espantos e risos, de namoros e “desnamoros”. Até de lenços Christian Dior que nunca deixaram de ser… um trapo.

Derrubar a fachada do regime

Sergio Fernandez e Alexandre Alves Costa começaram a colecionar figurado de Barcelos há mais de meio século. (Foto: DR)

Era uma vez uma geração, nos anos de 1960, que estava interessada em conhecer o “Portugal verdadeiro”, diz-nos Alexandre Alves Costa. Queria era viajar pelo país, e descobrir as suas “verdadeiras expressões”. Queria ir para além do que António Ferro, o “construtor da identidade” queria fazer crer que Portugal seria. Na essência desta procura esteve “uma espécie de necessidade”, aponta Sérgio Fernandez. Era preciso descobrir a realidade “escamoteada por uma fachada do regime que combatíamos”.

Esta fase coincidiu com uma luta dos arquitetos modernos “que lançaram um inquérito à arquitetura popular em Portugal”. Começaram a ir às feiras, conheceram pessoas, fizeram amizades, nomeadamente com barristas. De resto, eram ainda estudantes quando, com António Quadros (artista plástico também formado na Escola de Belas Artes do Porto, precursora da FBAUP), se deslocavam regularmente a Galegos (Barcelos). Chegaram a comprar peças em lote, ou ainda por acabar.

“Não estavam ainda pintados, ou vidrados”, explica Fernandez. “Era melhor apanhar aquele do que ir alguém e apanhá-lo depois de nós”. E a verdade, confessa o arquiteto, é que também “havia uma certa concorrência entre nós mesmos”.

As coleções retratam o trabalho criativo de alguns dos mais importantes ceramistas de Barcelos, com nomes como Mistério, Maria Sineta, Rosa Côta, Júlia Côta, Teresa Mouca, mas é essencialmente Rosa Ramalho, escultora e ceramista que assume um lugar de destaque na vida destes dois jovens arquitetos.

Pelo seu caracter exuberante, direto, divertido e desarmante, Rosa Ramalho acaba por ser também amiga e confidente das histórias de amor e desamor. Tem peças que transitam entre o real e o imaginário, habitualmente despojadas de elementos supérfluos. Uma aversão que parecia transpor para outras esferas do comportamento. Fosse qual fosse o contexto, em jantares ou ocasiões de cerimónia (como terá sido o caso com o Rei de Itália ou com o Presidente da República), era de lenço preto que se apresentava. Fosse qual fosse a circunstância. Ora, um dia ofereceram-lhe, em alternativa, um lenço com outras cores (Christian Dior…) Ao que terá dito, em jeito de desabafo: Para que quero este trapo? A Presidência da República, em 1981, a título póstumo, atribuiu-lhe o grau de Dama da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada.

“A expressão de arte popular mais interessante de Portugal”

Desde o porco que se confunde com um touro (e tem cornos), ao galo que se apresenta com uma criança ao colo (numa atitude de proteção) ou o bicho com três dentes e aspeto fantasmagórico, é notória a manutenção de alguns aspetos “proto-históricos”, como referia o naturalista, etnógrafo e arqueólogo português Augusto da Rocha Peixoto, mas também a respetiva evolução, a absorção de outras culturas como a religiosa e a rotina do dia-a-dia.

Temos, por isso, nestas coleções, bichos que não sabemos se alguma vez existiram, peças alusivas à religião e também peças representativas do dia-a-dia como um homem a andar de bicicleta. As facetas misturam-se. Não sendo o único que lhes interessava, o figurado de Barcelos revelou possuir “uma riqueza espantosa do ponto de vista formal e etnográfico”, explica Alexandre Alves Costa. Daí o pavio da paixão arder até hoje.

Embora reconheçam a existência da repetição, como ocorre sempre na arte popular, é notória a viragem para uma criação artística, para a “invenção” e para a “criatividade”. O figurado “é muito variado”. Estão representados os animais da lavoura e da capoeira, há uma vertente funcional, de apitos ou paliteiros e também elementos do quotidiano e da vida rural portuguesa. “Há o lavar da roupa, o ir ao moinho e andar a pastar os bichinhos”.

Depois, acrescenta o arquiteto, “existe também a representação dos elementos religiosos”. E, por fim, temos o verdadeiro figurado primitivo, ou seja, a arte primitiva, diz-nos Alves Costa, agarrando uma peça que representa um animal de esgar curioso, dominado por três dentes. “É um bicho que não existe. Foi inventado pela tradição popular. Apareceria em sonhos, provavelmente. A Sra. Rosa (Ramalho) chegou a perguntar-nos ‘será que este bicho existe lá nos montes’? Já os reis a cavalo… São o progresso da realidade”. Elementos que transformam estas peças “numa expressão artística da maior importância”.

Alexandre Alves Costa não hesita em apontar o figurado de Barcelos como “a expressão de arte popular mais interessante de Portugal”.

A fase da partilha com o grande público

Sergio Fernandez encontra uma “grande ironia” em peças como o porco que mais se assemelha a um touro onde encontra “toques de sublimação e anedota” numa “cara que se abre e se ri. E deita a língua de fora”. A ligação que mantém com elas resume-se a uma frase: “eram irresistíveis”. Depois de uma vida de convivência, “pareceu-nos que era mais que justo abrir isto ao desfrute de outras pessoas. Porque é uma expressão artística que creio que está no fim”. Sabendo que atualmente seriam “quase impossíveis de encontrar”, tudo “ganha um valor muito especial para nós”.

Figuras históricas como reis e rainhas, mitos como o milagre das rosas, os cabeçudos, santos, diabos, bandas musicais… Entre o naturalismo, a tradição primitiva, a adaptação, a representação do quotidiano da vida rural, a cultura religiosa e a capacidade de responder a encomendas estão aqui cerca de 70 anos de paixão por uma expressão artística que acompanhou a história do país. Peças que vêm robustecer a atual coleção de olaria nacional do MHNC-UP.

“A U.Porto está muito satisfeita com esta doação que vem enriquecer o património etnográfico do MHNC-UP, nomeadamente a coleção de olaria nacional que já existe, podendo, assim, contribuir para a sua preservação e divulgação, tornando esta coleção acessível ao grande público”, afirma Fátima Vieira, vice-reitora para a Cultura, Museus e Editora.

Algumas das peças doadas estarão na exposição dedicada a Aurélia de Sousa, que vai realizar-se em julho, integrada no programa de evocação do centenário do seu desaparecimento, em diálogo com as ilustrações feitas pela mesma entre 1898 e 1899, enquanto estudante da Academia de Belas Artes do Porto.

A cerimónia de dia 25 de maio tem início previsto para as 10h00 e incluirá a exposição de algumas das peças doadas. A sessão contará com as presenças do Reitor da U.Porto, António de Sousa Pereira, da Vice-reitora para a Cultura, Museus e Editora, Fátima Vieira, e dos próprios doadores.

Isabel Maria Fernandes, diretora do Museu Alberto Sampaio, do Paço dos Duques e Castelo de Guimarães (e ex-diretora do Museu de Olaria de Barcelos), fará a apresentação da coleção.

A apresentação pública das doações será feita na forma de uma exposição, a inaugurar no primeiro trimestre de 2023.