Do piso inferior ao último piso da icónica Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP) vão muito mais do que seis pisos e outras tantas dezenas de metros de distância. Atravessá-los obriga a percorrer um emaranhado de escadas de caracol, porta de entrada para um mundo mágico de livros a perder de vista, com o Douro no horizonte. E poucos o conhecerão tão bem como João Cabral Leite, o homem que, durante as últimas três décadas, dirigiu os Serviços de Documentação e Informação da FLUP.

A história da PESSOA desta semana daria ela própria um livro, com direito a prefácio na primeira pessoa: “Nasci na ilha São Miguel nos Açores, numa terra chamada Povoação, assim designada por ter sido o primeiro local a ser povoado nessa deslumbrante ilha situada no meio do Oceano Atlântico. No dia do meu nascimento, o concorrente não me deixou grandes hipóteses de festejar – 25 de dezembro de 1955, dia que deu origem ao meu segundo nome Emanuel”, apresenta-se.

A ambição do jovem “povoador” não cabia, contudo, na ilha que o viu nascer. E foi assim que, no início da década 70, partiu para a “aventura” que viria a definir a sua vida. “Sair dos Açores, no início dos anos 70 do século passado, para continuar os estudos era uma aventura. Mas os açorianos são aventureiros e emigrantes por natureza e, em 1973, “embarquei” numa viagem de 24 horas entre a Povoação e a invicta cidade do Porto”. Objetivo? “Licenciar-me em Filologia Germânica na Faculdade de Letras da U.Porto para ser professor de inglês e alemão no ensino secundário”.

Já no Porto, é nos conturbados mas “inesquecíveis” tempos do pós-Revolução que João Cabral Leite vai fazer os cinco anos curso, intercalando as aulas com os jogos de futebol com os amigos. “Bibliotecário que gosta de futebol é uma raridade onde me incluo”, confessa-se. Pelo meio, e “como o dinheiro não abundava”, deu aulas no Externato Ellen Key, realizando assim o sonho de ser professor. Mas o destino tinha outros planos…

“Foi nessa altura que, literalmente, vesti a camisola da Universidade para nunca mais a deixar”, recorda João Cabral Leite, aqui em representação da equipa de futebol da U.Porto. (Foto: DR)

Terminada a licenciatura, e já depois de cumprir o serviço militar em Lisboa, regressa a aos Açores para ingressar no curso de Especialização em Ciências Documentais da Universidade do Açores, instituição onde inicia a carreira de bibliotecário. No Porto tinha ficado, porém, muito mais do que uma aventura para contar aos netos. Assim, e cinco anos depois, em 1985, regressa em definitivo à FLUP para “fazer carreira como bibliotecário”.

Responsável pela Biblioteca da Faculdade de Letras durante 35 anos (incluindo mais de duas décadas como Diretor dos Serviços de Documentação e Informação, entre 1993 e 2015), orgulha-se de ter sido “o primeiro Diretor de Serviços na área das Bibliotecas da U.Porto, ainda no antigo edifício à Rua do Campo Alegre”. E foi nessa condição que liderou “o processo de informatização das bibliotecas da Universidade e a criação de serviços inovadores de apoio à investigação, nomeadamente a edição de publicações digitais e a sua disseminação em bases de dados internacionais”.

(Foto: DR)

Em paralelo com a direção da Biblioteca, lecionou várias disciplinas do Curso de Especialização em Ciências Documentais da FLUP, bem como diversos cursos de preparação de Técnicos Profissionais de Biblioteca e Documentação. Colaborou ainda em programas de formação de utilizadores de bibliotecas, coordenado vários projetos nacionais e internacionais, nomeadamente em Angola e Moçambique.

Páginas entre muitas de um livro de vida que conheceu novo capítulo em setembro de 2022, data em que João Cabral Leite se aposentou. Desde então, continua a colaborar com a FLUP na qualidade de colaborador externo em regime de voluntariado. Uma dedicação que a FLUP reconheceu, em março passado, com a atribuição da medalha de ouro da instituição.

“Mais do que uma distinção pessoal e, porque ninguém constrói uma carreira sozinho, considero que se tratou do reconhecimento do trabalho dos funcionários não docentes que tudo fazem para dignificar o nome da grande Instituição que é a Universidade do Porto”, destaca.

Quanto ao futuro, é aos livros que João Cabral Leite promete continuar a dedicar-se, fazendo “o que não fiz durante uma vida inteira como bibliotecário: organizar a minha biblioteca pessoal”. Agora sem a pressão do tempo e, de preferência, com vista para o mar e a saborear um cozido à portuguesa: “Agora será muito bom nada fazer sempre que me apetecer!”

João Cabral Leite recebeu a medalha de ouro da FLUP das mãos da nova diretora da faculdade, Paula Pinto Costa. (Foto: DR)

Naturalidade? Povoação, Ilha de São Miguel, Açores

Idade? 67 anos

– De que mais gosta na Universidade do Porto?

A Universidade do Porto recebeu-me como estudante em 1973 e mais tarde como funcionário em 1985. A U.Porto é a casa onde vivi a maior parte da minha vida. Admiro-a pela qualidade do ensino que ministra, por ser uma instituição de referência reconhecida, nacional e internacionalmente, pela investigação que desenvolve e pela sua diversidade.

– De que menos gosta na Universidade do Porto?

Da falta de comunicação e cooperação entre as pessoas, talvez pela dispersão geográfica das suas Faculdades, Não sei!…

– Uma ideia para melhorar a Universidade do Porto? 

Criar mecanismos para aproximar as pessoas, e acabar com algumas barreiras que dificultam a comunicação e a cooperação entre faculdades, departamentos, serviços, etc.

– Como prefere passar os tempos livres?

Tempo livre é o que não me falta após a aposentação, em setembro de 2022. Mas gosto de estar com a família. Gosto de ver televisão, ainda leio o jornal em papel, no café de preferência, e vou fazer o que não fiz durante uma vida inteira como bibliotecário: organizar a minha biblioteca pessoal, com especial atenção à coleção sobre os Açores. Organizar e digitalizar milhares de negativos e fotografias que se acumularem ao longo vida, e descansar. Agora será muito bom nada fazer sempre que me apetecer!

– Um livro preferido?

Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley.

– Um disco/músico preferido?

Dark Side of the Moon, dos Pink Floyd.

– Um prato preferido?

À mesa, gosto de um bom cozido à portuguesa e, no mês de agosto, em férias nos Açores, não resisto aos filetes de abrótea no restaurante do Hotel Terra Nostra, nas Furnas. No Porto, a francesinha é a minha perdição.

– Um filme preferido?

2001 Odisseia no Espaço (visto numa boa sala de cinema – na televisão não tem impacto).

– Uma viagem de sonho? 

Países que gostaria de voltar a visitar: Angola e Moçambique. Uma viagem por realizar, a Moscovo antes de fevereiro de 2022. Cidade de eleição? Roma.

Férias? Na Povoação, Açores, sempre. No meio do oceano, com a família, sem internet, sem telemóveis, completamente “desligado”.

De férias nos Açores. (Foto: DR)

– Um objetivo de vida?

Viver o dia a dia com qualidade e contribuir para a felicidade da minha família.

– Uma inspiração? (pessoa, livro, situação…)

Os meus pais, a minha mulher, os meus filhos (a melhor coisa que realizei nos meus 67 anos de vida).

– Quais os projetos para o futuro?

Depois da aposentação em setembro de 2022, tenciono continuar a colaborar com a Faculdade que me acolheu em 1985. Em casa, organizar a minha biblioteca pessoal, com especial atenção à coleção sobre os Açores. Organizar e digitalizar milhares de negativos e fotografias que se acumularem ao longo vida, e descansar. Agora será muito bom nada fazer sempre que me apetecer!