Investigadores portugueses alertam os profissionais de saúde para a necessidade de identificarem e reportarem os casos suspeitos de maus tratos sobre as pessoas mais velhas, colocando um ponto final ao “ciclo de violência” e reduzindo o impacto na saúde das vítimas.

O alerta surge na sequência de um estudo coordenado por Tiago Taveira-Gomes, professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), que analisou registos de mais de 68 mil adultos com idade igual ou superior a 60 anos, relativos a duas décadas (2001-2021), e encontrou 3.092 supostas vítimas de violência, correspondendo a uma percentagem de 4,5%.

Os resultados deste trabalho, publicado no Journal of Clinical Medicine, indicam que as supostas vítimas são sobretudo mulheres (56,6%), pessoas mais velhas (76 anos em média), mais pobres, com maiores taxas de consumo de álcool e com mais problemas de saúde, embora não se possa afirmar se estas são causas ou consequências da exposição à violência.

Os autores salientam que, entre as supostas vítimas, as lesões traumáticas, como fraturas, e as feridas superficiais são 1,4 a 1,5 vezes superiores. Também as intoxicações, as doenças psiquiátricas, a ideação suicida e o consumo de medicação são mais frequentes do que na população geral (1,7; 1,5; 1,7 e 1,3 vezes mais, respetivamente).

“Os casos suspeitos de maus-tratos apresentam maiores taxas de fatores de risco para a saúde, bem como maiores taxas de lesões traumáticas, intoxicações, doenças físicas e doenças mentais, o que está de acordo com a literatura”, explicam os autores do estudo.

Ida às urgências é “oportunidade única” para identificar as vítimas

De acordo com os investigadores, “a exposição continuada aos maus-tratos está associada a uma hiperativação crónica do eixo hipotalâmico-pituitário-adrenal, que regula a resposta ao stress. A sua desregulação resulta em mais inflamação, alterações hormonais, disrupção do sistema neuroendócrino e autoimune. Adicionalmente, pode espoletar doenças genéticas ou latentes”.

Por isso, dizem, “uma ida ao serviço de urgência representa uma oportunidade única, mas geralmente perdida, para identificar estas vítimas de maus tratos e de iniciar uma intervenção. Esta pode ser a única vez em que os mais velhos vulneráveis e isolados saem de casa”.

Apesar de parecer elevada, a taxa de supostas vítimas de maus-tratos entre as pessoas mais velhas identificadas neste estudo fica muito abaixo do que é reportado a nível europeu e mundial (à volta de 15%). Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) estimam que uma em cada seis pessoas com idade igual ou superior a 60 anos sofreu algum tipo de maus tratos, incluindo violência psicológica, física ou sexual.

“A falta de registo dos casos suspeitos de maus-tratos é particularmente alarmante na população mais velha, na medida em que tem uma repercussão substancial na proteção e da saúde das vítimas. Estes dados aumentam a responsabilidade dos profissionais de saúde na deteção e referenciação dos casos”, afirmam.

Para esta subnotificação poderão estar a contribuir, segundo os autores, uma série de fatores, desde a reduzida sensibilização para o tema, passando pela falta de treino ou insegurança na abordagem das vítimas, pelo medo de ofender ou de agravar a situação, até fatores relacionados com as vítimas, como a sua vulnerabilidade, sentimento de vergonha, culpabilização, medo do estigma ou de retaliação.

Em Portugal, a violência intrafamiliar e a violência perpetrada por um cuidador são consideradas crimes públicos, não dependendo de queixa das vítimas. Os profissionais de saúde, bem como os funcionários públicos, são legalmente obrigados a reportar as suspeitas de crime de que tenham tomado conhecimento no exercício ou por causa das funções que desempenham.

Neste estudo participaram investigadores de diversas instituições, designadamente da FMUP, CINTESIS@RISE, ICBAS, Universidade Fernando Pessoa, CESPU, Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses e USF Caravela – Unidade Local de Saúde de Matosinhos (instituição de saúde onde foram processados os dados).