As mulheres vítimas de violência nas relações de intimidade (uma das formas de violência doméstica), pelos atuais companheiros ou ex-companheiros, têm mais comportamentos de risco para a saúde e mais problemas de saúde, incluindo perturbações da saúde mental, diabetes, enfarte agudo do miocárdio, acidente vascular cerebral e cancro do que a população geral.

Este é um dos principais resultados de uma investigação desenvolvida pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), publicada no International Journal Environmental Research and Public Health, relativa a um estudo do mundo real, que considerou os registos clínicos eletrónicos de 20 anos de funcionamento de uma instituição de saúde do Norte do país.

Segundo este trabalho, relativo ao período de 2001 a 2021, 1.676 mulheres entre os 16 e os 60 anos de idade foram identificadas pelos médicos como vítimas ou prováveis vítimas de violência física, emocional, psicológica e/ou sexual, perpetrada por parceiro íntimo, atual ou passado. Um número que representa apenas 2,3% do universo das mulheres que recorreram à unidade de saúde em estudo, no mesmo período, e sobre o qual não recaiu qualquer suspeita de vitimização (mais de 72 mil).

Falta de registo de casos suspeitos “é motivo de grande preocupação”

De acordo com os autores, estes resultados parecem indicar uma taxa de deteção da violência muito baixa por parte dos médicos, uma vez que se estima que a prevalência de mulheres vítimas deste tipo de violência seja de 18% em Portugal e 27% em todo o mundo.

Para os autores, este desfasamento entre o número de vítimas identificadas pelos médicos e o número expectável terá várias explicações, como a questão do segredo médico ou as complexidades inerentes ao registo de factos que envolvem a prática de crimes. Nada que, segundo dizem, justifique a “passividade” dos clínicos.

“A falta de identificação e registo de casos suspeitos de violência, por parte dos médicos, é motivo de grande preocupação, tendo em conta as graves consequências para a saúde das vítimas”, alertam.

Vítimas de risco

Comparando as mulheres que sofriam violência com as que não sofriam, os investigadores referem que “as mulheres vítimas de violência nas relações de intimidade têm, de facto, mais problemas de saúde, apresentando maior prevalência de uma série de doenças, como obesidade, diabetes tipo 2, síndrome metabólica, hipertensão arterial, doença cardíaca precoce, enfarte do miocárdio, acidente vascular cerebral, infeções urinárias, infeções sexualmente transmissíveis, asma e cancro”.

Conforme explicam, “estas situações acabam por ser tratadas sem atender às razões que estão na sua origem. No entanto, sabe-se que o stresse traumático associado a experiências violentas pode causar distúrbios no normal funcionamento do organismo da mulher, interferindo em vários sistemas, designadamente o sistema nervoso, o sistema imunológico e o sistema endócrino”.

Este estudo indica também, e entre outros, que estas mulheres têm um risco 3,6 vezes superior de padecerem de problemas de sono e um risco 2,4 mais alto de terem dor crónica inespecífica. A probabilidade de sofrerem de ansiedade e doenças mentais também mais do que duplica, o que explica o maior consumo de ansiolíticos (1,7 vezes maior), bem como de outros fármacos prescritos para o tratamento de doenças psiquiátricas. Do mesmo modo, constata-se que a ideação suicida é 8,6 vezes superior.

Outra conclusão aponta para um risco aumentado de comportamentos de risco para a saúde, como o consumo de álcool, tabaco e outras substâncias aditivas. Neste último caso, o risco chega a ser 13 vezes maior do que na população de mulheres não vítimas. Aumentam, igualmente, as taxas de lesões traumáticas e de intoxicações.

“As vítimas de violência nas relações de intimidade estão em maior risco não apenas de abusos e intoxicações, mas também de ferimentos acidentais ou autoinfligidos”, sublinham. As intoxicações, por exemplo, são cerca do dobro das registadas na população geral estudada.

A investigação encontrou, ainda, uma associação entre ser vítima de violência pelo companheiro ou ex-companheiro e a privação social, que é cerca de oito vezes superior nestas mulheres.

“Complexidades não podem servir de justificação”

De acordo com este trabalho, importa estar atento às consequências desta violência não só a curto prazo, mas também a médio e longo prazo, “por vezes mesmo muitos anos depois de a violência terminar”.

Nas conclusões deste estudo, os autores realçam que “ainda há muito trabalho de sensibilização e de formação que precisa de ser feito junto dos médicos, principalmente a nível dos cuidados de saúde primários”. E avisam: “as complexidades inerentes a estes casos não podem servir de justificação para a falta de intervenção”.

Este estudo tem autoria de Maria Clemente Teixeira, Teresa Magalhães, Ricardo Dinis-Oliveira e Tiago Taveira-Gomes, investigadores da FMUP, e de Joana Barroca, médica da Unidade Local de Saúde de Matosinhos (ULSM).