Travessia de Susan Meiselas e Muxima (palavra indígena angolana/Kimbundu) de Alfredo Jaar são as propostas que a Bienal’21 Fotografia do Porto traz às galerias da Casa Comum – no edifício histórico da Reitoria da Universidade do Porto – já a partir desta sexta-feira, dia 14 de maio. Com curadoria de Lydia Matthews, a mostra Travessia ∞ Muxima estará patente ao público até 27 de junho.

O símbolo – ∞ – assim o pretende demonstrar: que existe um infinito de ligações entre os projetos de Susan Meiselas e Alfredo Jaar. Uma linha infinita que liga as experiências do quotidiano de africanos a viver em Angola e de membros da comunidade negra a viver no Porto. A montante, uma herança que ambos partilham: um percurso marcado pelo colonialismo português.

“Muxima” ou coração em Kimbundu

Muxima é um vídeo/homenagem ao povo angolano a partir de uma única canção folclórica popular. Nos seus dez cantos, e para além do colonialismo português, este “poema visual” de Alfredo Jaar aborda outros temas como os 30 anos de guerra civil e uma pandemia que ainda hoje afeta Angola: o HIV/SIDA.

“Muxima” é a palavra usada para designar “coração” na língua Kimbundu e é também o título de uma música popular, escrita por um dos líderes do movimento anticolonialista de libertação de Angola. Para abrir os olhos e o coração.

Que “travessias” enfrentam as comunidades negras do Porto?

Foi em 2004 que Susan Meiselas, fotógrafa americana e presidente da Magnum Foundation, visitou Portugal pela primeira vez. Através de um flyer, que encontrou no SOS Racismo, chegou até ao Bairro da Cova da Moura. Passou lá algum tempo a captar experiências e vivências. A perceber como é a vida em comunidade deste bairro do município da Amadora.

A exposição que resultou deste trabalho fez-se com ampliações de polaroids, impressas em telas plastificadas, que foram penduradas nos estendais de roupa de trinta casas dos moradores do bairro. A exposição foi inaugurada, na altura, pelo Presidente da República Jorge Sampaio.

Quando a desafiaram para participar na edição 2021 da Bienal da Fotografia do Porto, Susan Meiselas, a viver em Nova Iorque e no epicentro do movimento Black Lives Matter, não teve como evitar a pergunta: Como vive a comunidade negra da cidade do Porto?

Com todas as vicissitudes a que a pandemia obrigou, vir trabalhar para o terreno, como costuma fazer, teria de obedecer a outras regras. Conviver com novas limitações. Entre Nova Iorque, Atenas, cidade onde vive a curadora da exposição, Lydia Matthews, e Vigo, onde estava Cinthia Bodenhorst, a diretora artística da exposição, a mostra foi ganhando corpo.

Mesmo sem sair de casa, Susan Meiselas teve mãos, pés e olhos no terreno. Teve quem a conduzisse pelas ruas da cidade, abrisse portas, fizesse entrar em locais que, tantas vezes, escapam ao olhar de grande parte dos habitantes da cidade. Daí que Travessia seja um projeto colaborativo. Susan Meiselas, de sua casa, pediu a pessoas da comunidade negra da cidade do Porto que, através de telemóvel, a guiassem pelas ruas da cidade e partilhassem as suas experiências do quotidiano. Deste exercício resulta um circuito que, para muitos dos habitantes da cidade, permanece invisível.

Dando voz a histórias que surgiram destes encontros, este projeto experimental lança questões como: Que espécie de “travessias” moldam a vida das comunidades negras do Porto?

É preciso descolonizar os descobrimentos?

Todos os dias, quando passa na rua onde vive, Dori Nigro, depara-se com a mesma placa: “Rua de Álvares Cabral  – Descobridor do Brasil”.

Este antigo estudante da Faculdade de Belas Artes da U.Porto (FBAUP), onde concluiu o Mestrado em Práticas Artísticas Contemporâneas, tem nacionalidade brasileira e é de sua autoria uma das peças artísticas que também vai estar patente na exposição. Começa com uma pergunta que é mais uma “frase manifesto”: É preciso descolonizar os descobrimentos?

Dori Nigro olha para esta exposição da Bienal de Fotografia do Porto com a expectativa de que este seja um espaço de resistência “micro-política”, um espaço que possa germinar e conduzir “a outras práticas de inclusão”.

Foram dele os passos que levaram Susan Meiselas a descobrir o Porto, com a ajuda de tantos outros (mais de 40) membros da comunidade negra da cidade, como foi o caso da “Dona Cláudia”, a octogenária e presidente da Associação a Presidente e Diretora da Associação Luso- Africana Ponto nos Is que “tantas portas abriu”.

Elementos fundamentais no terreno foram também Beatriz Lacerda, estudante de Sociologia da Faculdade de Letras da U.Porto (FLUP), cuja tema de mestrado será, exatamente, sobre este trabalho, assim como a docente Lígia Ferro, sua orientadora da FLUP, Faculdade parceira do projeto.

Preparado para conhecer outra cidade do Porto?

Vá preparado para descarregar uma app que lhe vai contar histórias, na primeira pessoa, sobre os vários protagonistas que co-criaram a narrativa que agora ganha corpo nas Galerias da Casa Comum da U.Porto. Travessia é a primeira apresentação de um trabalho que vai ter continuidade com a criação de um website próprio que servirá de arquivo digital e ferramenta de networking para a comunidade africana do Porto e para os investigadores académicos.

Virgílio Ferreira, Diretor Artístico da Bienal de Fotografia do Porto, está convencido de que, através desta exposição, a Bienal estará a tocar em “aspetos sensíveis”, como a questão do colonialismo, proporcionando, em simultâneo, uma “viagem incrível” por uma cidade desconhecida para a maior parte dos habitantes e trazendo para o palco mediático uma comunidade que “passa por invisível”.

Não é só fotografia, não é só vídeo, não é só um objeto audiovisual artístico, não são só histórias e percursos de vida, nem só tema de debate sociológico. Tendo Susan Meiselas, como “maestrina” desta sinfonia de passos em volta da cidade, Travessia é um documentário expandido.

No dia 15 de maio, sábado, há uma conversa agendada, no local da exposição, com a curadora, Lydia Matthews, às 14h00.

O que acontece com o mundo acontece connosco

Entre o Porto e Angola, Travessia ∞ Muxima foca a atenção na herança do colonialismo português em diferentes geografias, evidenciando os desafios socioculturais que se traduzem em precariedade e resiliência das comunidades africanas e afrodescendentes nos dois continentes. Lança-nos provocações: Como passar a ver o que para muitos permanece invisível, mas que é, no entanto, impactante para a comunidade negra? A que temas o artista, através do seu trabalho, decide dar visibilidade em detrimento de outros?  Como nos podemos tornar mais conscientes dos diferentes mundos que coexistem?

O que acontece com o mundo acontece connosco foi, precisamente, o mote para a organização da edição deste ano da Bienal de Fotografia do Porto que passa por 19 exposições visitáveis no Porto, Lisboa e online. São “diferentes perspetivas sobre problemas locais e globais”, explica Virgílio Ferreira, inicialmente transmitidas aos artistas e curadores como forma de desafio e cujo resultado é agora apresentado ao público, num exercício de reflexão conjunto.

A entrevista ao diretor artístico e programador da Bienal de Fotografia do Porto pode ser escutada, na integra, aqui:

Quem é quem?

Nas Galerias da Casa Comum, Meiselas e Jaar convidam o público não apenas a olhar para as imagens, mas também a ouvir com atenção e a considerar a ética da prática artística.

A propósito desta tomada de consciência do poder investido em quem cria uma imagem, Alfredo Jaar produziu uma peça artística que é também um manifesto. A Universidade do Porto reproduziu esta mensagem que se materializa em cartaz, para oferecer a quem visitar a exposição.

O artista chileno já apresentou o seu trabalho em diferentes partes do mundo, nomeadamente em diversas edições das Bienais de Veneza e São Paulo e da Documenta, em Kassel. Recebeu o Hiroshima Art Prize em 2018 e o Hasselblad Award em 2020. O seu trabalho pode ser encontrado nas colecções The Museum of Modern Art and Guggenheim Museum, New York; Art Institute of Chicago and Museum of Contemporary Art, Chicago; MOCA and LACMA, Los Angeles; MASP, Museu de Arte de São Paulo; TATE, London; Centre Georges Pompidou, Paris; Hiroshima City Museum of Contemporary Art and Tokushima Modern Art Museum, Japan; M+, Hong Kong;

Fotógrafa reconhecida internacionalmente pela documentação de questões relacionadas com os direitos humanos, Susan Meiselas já reuniu, ao longo da sua carreira, inúmeras distinções, entre elas — Robert Capa Gold Medal por “outstanding courage and reporting” pela Overseas Press Club pelo trabalho na Nicarágua (1979); Leica Award for Excellence (1982); Engelhard Award from the Institute of Contemporary Art (1985); Maria Moors Cabot Prize da Columbia University pela cobertura da Latin America (1994); Hasselblad Foundation Photography prize (1994); Cornell Capa Infinity Award (2005).

A curadora, Lydia Matthews, é crítica, educadora, ativista cultural e Professora na Parsons School of Design e Directora do Curatorial Research Lab na The New School, tendo recentemente publicado o livro “I stand in my place with my own day here”, sobre site-specific art.

A Bienal Fotografia do Porto é organizada e produzida pela Plataforma Ci.CLO em coprodução com a Câmara Municipal do Porto, e financiada pela Direção-Geral das Artes, com o apoio mecenático do BPI e da Fundação ”la Caixa”, o apoio institucional da Comissão Nacional da UNESCO e uma rede de vários parceiros estratégicos a nível nacional e internacional, nomeadamente a Universidade do Porto