É uma das osgas com maior propagação no planeta e, de acordo com um estudo internacional agora revelado, a ação humana terá sido a principal responsável pela distribuição tão abrangente da Hemidactylus mabouia, através das rotas transatlânticas de tráfico esclavagista desde África.

How the African house gecko (Hemidactylus mabouia) conquered the world é o título do artigo que acaba de ser publicado na Royal Society Open Science e que conta com a coautoria de Luis Ceríaco, curador do Museu de História Natural e da Ciência da U.Porto (MHNC-UP).

O investigador é o único português a participar neste estudo que fez a análise genética de centenas de exemplares de osgas preservadas em museus de todo o mundo e coletadas no terreno e que permitiu ainda descobrir que no seio daquela “espécie” estão, na realidade, escondidas mais 20 espécies novas.

Primeiro estudo abrangente da espécie

Permanecendo uma das maiores ameaças à biodiversidade, a verdade é que muitas vezes pouco se sabe sobre as origens evolutivas de espécies invasoras. Ora, foi, precisamente, para tentar trazer alguma luz sobre as origens da Hemidactylus mabouia que se conduziu este estudo. Trata-se de uma pequena osga Africana (máximo 68 mm de comprimento) atualmente distribuída por quase toda a África subsaariana, Madagáscar, América Central, incluindo a parte sul do México e da península da Baja Califórnia, o sul da Florida, todas as ilhas do Caribe e a América do Sul.

Nesta primeira amostragem, realmente abrangente (que envolveu cerca de 180 indivíduos), foram analisadas mais de 120 localidades por toda a sua área de distribuição e, em simultâneo, observaram-se mais de 100 exemplares de osgas existentes em museus espalhado por todo o mundo. O objetivo era claro: entender a evolução da história natural e da dispersão de um dos vertebrados mais amplamente distribuídos e invasores do mundo.

Da Zambézia para o resto do mundo

Entre outras técnicas, os investigadores recorreram à análise molecular, à reconstituição ancestral da área e a modelos de distribuição de espécies para determinar quantas linhagens de espécies estão contidas na H. mabouia e qual o período de distribuição, o que permitiu obter pistas sobre as origens evolutivas da invasão.

Os resultados deste estudo sugerem que o grupo da H. mabouia teve a sua origem na região biogeográfica da Zambézia, onde se diversificou num total de 20 linhagens específicas. Destas, apenas a espécie representada pelas populações da África Central Ocidental, a verdadeira H. mabouia, é assumidamente invasiva, tendo sido amplamente distribuída.

Com várias espécies ainda por descrever, a Zambézia é o principal ponto de diversidade do grupo e os modelos de distribuição sugerem que a H. mabouia foi capaz de competir com espécies nativas e estabelecer-se nos Neotrópicos (a partir do século XVII) graças à sustentabilidade do habitat e ao tráfico negreiro que permitiu à espécie esta travessia para o outro lado do Atlântico, e não só. Esse mesmo circuito de comércio triangular facilitou o caminho inverso, fazendo com que a pequena osga voltasse a zonas africanas, estendendo-se a sul, para a Província Sul Africana do Cabo Oriental.

À boleia do comércio triangular de escravos

No artigo pode ler-se que “de 31.821 viagens de escravos documentadas entre 1525 e 1875 (www.slavevoyages.org), quase 2.000 tinham já ocorrido em 1650 (data a que corresponde a primeira documentação de H. mabouia no Novo Mundo), grande parte com origem na África Central Ocidental”. O artigo acrescenta que a maior parte dos escravos “era desembarcada em colónias espanholas na América, principalmente nas áreas continentais que rodeiam o Mar das Caraíbas, as Antilhas Maiores e Menores, ou seja, território espanhol antes de 1625”, seguidas pela região de Pernambuco do nordeste brasileiro.

Luís Ceríaco afirma que “a hipótese de que a osga teria sido transportada nos inícios da globalização, nomeadamente por este tipo de navios, já havia sido levantada pelo herpetólogo brasileiro Paulo Vanzolini no final dos anos 60. Mas, na altura, não havia dados genéticos que o comprovassem”. Sendo “muito pouco provável que uma osga deste tamanho conseguisse atravessar o Atlântico a nado,” e verificando-se “a baixa diferenciação genética entre as populações Africanas e destas zonas da América do Sul e Caribe ” os barcos negreiros, assim como o restante comércio transatlântico, emergem como “boleias perfeitas”.

O investigador acrescenta ainda que há “evidências” através dos desenhos de Georg Marcgrave (1610 – 1644), um naturalista alemão que explorou o Brasil no tempo da invasão holandesa, “que a espécie já por lá andava em 1640’s”. Uma situação que se repete ainda nos nossos dias, adverte Luís Ceríaco. Ainda há cerca de dois meses uma osga da mesma espécie foi identificada no aeroporto de Lisboa pelo Instituto de Conservação da Natureza das Florestas (ICNF) numa importação de fruta proveniente de Angola. “Por ser uma espécie potencialmente invasora, este exemplar foi eutanasiado e faz hoje parte das coleções do MHNC-UP”.

A responsabilidade humana

Este estudo vem reforçar a ideia de que o ser humano é o principal responsável pelo transporte e estabelecimento de plantas e animais “invasores”. Não só ao potenciar o seu transporte, mas também, alerta o biólogo, porque “degradamos os habitats nativos, o que fornece, às espécies invasoras, nichos abertos para se estabelecerem”.

Outra conclusão a sublinhar é a importância do estudo das espécies mais comuns, amplamente distribuídas, e que estão próximas dos núcleos urbanos. Por se assumir que já são bem conhecidas despertam pouco interesse por parte dos investigadores e, tal como este caso veio comprovar, “bastou um olhar mais detalhado para descobrirmos que o que se assumia ser uma espécie pan-africana tem, afinal, cerca de 20 espécies “irmãs”, muito parecidas, mas que são diferentes e novas para a ciência”, acrescenta Luís Ceríaco.

O estudo da espécie que conquistou o mundo

O estudo foi desenvolvido ao longo de seis anos e passou por diferentes países, sendo que as espécies foram recolhidas no terreno e em museus europeus como o MHNC-UP, mas também norte-americanos e africanos. No terreno, para além de Luís Ceríaco, estiveram cinco investigadores da Universidade de Villanova, em Filadélfia (EUA).

Luís Ceríaco é doutorado em História e Filosofia da Ciência – Museologia pela Universidade de Évora e pós-doutorado pela California Academy of Sciences, Natural History Museum of the University of Florida, Villanova University e University of Michigan-Dearborn. Faz investigação em história da ciência, museologia e biodiversidade, trabalhando em estreita parceria com colegas e museus dos Países de Língua Oficial Portuguesa (PALOP).

Como biólogo, é autor de mais de 80 publicações científicas, tendo sido responsável pela descoberta e descrição de mais de duas dezenas de novas espécies para a ciência.