Um novo estudo, publicado na revista Science por uma equipa internacional liderada por investigadores da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP) e do BIOPOLIS-CIBIO (Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da U.Porto), focou-se na evolução da camuflagem de inverno da lebre-de-cauda-branca e destaca a importância de preservar a diversidade genética para que as espécies se possam adaptar às alterações climáticas e sobreviver. 

A beleza das paisagens cobertas de neve esconde desafios formidáveis à sobrevivência das espécies. “Um animal de cor escura destaca-se numa paisagem coberta de neve, e torna-se imediatamente visível por presas ou predadores. Para presas, como as lebres, a capacidade de se manterem camufladas pode fazer a diferença entre a vida e a morte”, começa por explicar Mafalda Sousa Ferreira, primeira autora deste estudo, que foi parte da sua tese de doutoramento em Biodiversidade, Genética e Evolução na FCUP.  

Por causa da vantagem seletiva da camuflagem em ambientes que só se cobrem de neve durante o inverno, mais de 20 espécies de mamíferos e aves evoluíram a capacidade de alternarem a sua cor sazonalmente, mudando de castanho no verão para branco no inverno, o que lhes permite quase desaparecerem em paisagens cobertas de neve. Este delicado equilíbrio que evoluiu durante milhões de anos está agora sob ameaça devido às rápidas alterações climáticas.

Mais especificamente, “o desaparecimento da cobertura de neve que se prevê que vá a acontecer no próximo século em muitas áreas do globo vai fazer com que estas espécies que evoluíram a camuflagem branca de inverno fiquem expostas em habitats com pouca ou sem neve – vão brilhar como uma lâmpada contra um fundo negro”, continua Mafalda Sousa Ferreira, atualmente investigadora no BIOPOLIS-CIBIO. 

No artigo, a equipa de investigadores, que conta com quatro investigadores do BIOPOLIS-CIBIO/Universidade do Porto, focou-se numa espécie norte-americana de lebre: a lebre-de-cauda-branca. Diferentes indivíduos desta espécie podem ser castanhos, brancos ou ter uma coloração intermédia durante o inverno, de forma a camuflarem-se no seu habitat natural. O habitat desta lebre é também ele variável, e cobre regiões da América do Norte com diferentes níveis de cobertura de neve.

“Com recurso sobretudo a vários espécimes preservados em museus de história natural, fomos capazes de analisar toda a fantástica variação na coloração de inverno que é observada na lebre-de-cauda-branca. E para além da análise da cor, conseguimos a partir destas peças de museu sequenciar toda a sua informação genética”, partilha Paulo Célio Alves, professor na FCUP e investigador no BIOPOLIS-CIBIO.

A coloração de inverno da lebre-de-cauda-branca varia entre castanho e branco, como mostram as espécimes da coleção do Denver Museum of Nature & Science. (Foto: DMNS)

Populações com maior variabilidade genética estão mais bem preparadas

Ao sequenciar os genomas destas lebres, os investigadores descobriram que a variação na coloração de inverno é determinada sobretudo por três genes que controlam a produção e transporte de pigmentos de melanina no organismo – os mesmos pigmentos que determinam, por exemplo, a cor da pele dos seres humanos.

“Para além disto, quando comparamos várias espécies de lebres, descobrimos que estas variantes genéticas que determinam se um indivíduo tem cor branca ou castanha durante o inverno existem há milhões de anos. Isto demonstra que a adaptação que vemos atualmente resulta de uma longa história evolutiva, e que a variação nestes genes tem sido crucial para a sobrevivência das espécies em ambientes sazonais há muito, muito tempo”, menciona José Melo-Ferreira, docente da FCUP, investigador em biologia evolutiva do BIOPOLIS-CIBIO e cocoordenador deste estudo.

Uma vez estabelecida a relação entre a variação da coloração de inverno, os genes que controlam esta característica e variáveis ambientais (i.e., presença ou não de cobertura de neve), os investigadores foram ainda mais longe. “Combinamos os nossos resultados genéticos com projeções climáticas, e esta informação permitiu-nos perceber que as populações que mantêm maior variabilidade nestes três genes estão mais bem preparadas para responder aos declínios na cobertura de neve que se espera que ocorram no próximo século”, diz Mafalda Sousa Ferreira.

Licenciada em Biologia e mestre em Biodiversidade, Genética e Evolução pela FCUP, Mafalda Silva Ferreira desenvolveu o seu projeto de doutoramento no CIBIO, em colaboração com a Universidade de Montana (EUA). (Foto: DR)

Estas projeções para o final do século indicam que as lebres que permanecem castanhas no inverno irão expandir a sua distribuição, um fenómeno que poderá ajudar a resgatar a espécie do declínio causado pelas alterações climáticas. 

Contudo, os autores contrapõem estas previsões otimistas com uma nota de cautela. Um dos resultados finais mostra que esta maior capacidade de adaptação ocorre precisamente nas populações que, historicamente, foram desproporcionalmente alvo de ameaças com origem humana, como a perda de habitat, doenças e extermínio seletivo.

Para a equipa, este estudo mostra também a crucial importância em se manter a conectividade entre populações para garantir a preservação desta e de outras espécies a longo-prazo. José Melo-Ferreira conclui: “Apesar destas serem boas notícias para a lebre-de-cauda-branca, os nossos resultados também servem como um aviso para outras espécies que sofrem os efeitos das alterações climáticas. Quando as pessoas pensam em conservação, pensam normalmente na proteção das populações e habitats. As lebres-de-cauda-branca e as suas cores de inverno são um exemplo de como preservar a diversidade genética de uma espécie é igualmente importante, particularmente num mundo natural em rápida mudança.”

Este estudo, também assinado por Liliana Farelo, investigadora do BIOPOLIS-CIBIO e alumna da FCUP, integra ainda investigadores da Universidade de Montana e do Denver Museum of Nature & Science (EUA).