Em abril deste ano, a intervenção de Mariana Sottomayor no programa “Prós e Contras”, da RTP, tornou-se viral. Desde então, esta bióloga e professora auxiliar na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP) tem sido uma das vozes mais ativas e solicitadas no que toca à sensibilização para a prevenção da COVID-19. 

“O inimigo não é o vírus, o inimigo é o outro: o que transmite o vírus”. Foi com estas palavras, “emprestadas” por Maria de Sousa, cientista que faleceu este ano vítima de Covid-19, que Mariana começou por cativar os seus estudantes nas redes sociais. “Não conseguia ter sossego com a situação que se viveu no início da pandemia. Sentia uma angústia enorme por ver tanta gente com as suas vidas ameaçadas, literalmente e em termos económicos. Olhava para o surrealismo e o desgoverno de tudo o que se estava a passar, e não conseguia acreditar no que via. Não conseguia compreender que não fossem tomadas medidas tão simples como o uso da máscara, ou mais complexas como uma gestão profissional, ampla e consequente da comunicação sobre a situação”, conta.

Foi a partir desta constatação que a docente se mobilizou, juntamente com os seus estudantes, para lançar a iniciativa Vamos Vencer!, centrada na sensibilização e no apoio à população em relação ao vírus Covid-19, com especial enfoque no uso da máscara. Pelo meio, “as ideias foram-se organizando nas noites de insónia e um dia acordei e decidi, hoje não trabalho, tenho que colocar isto no papel”. Escreveu “tudo o que vinha pensando” e enviou para a comunicação social. Resultado? “Enviei ao fim da tarde, e quando acordei no dia seguinte tinha um sms do Observador com o artigo já publicado durante a noite”. Seguiram-se dois artigos publicados na revista Sábado, com a qual vem colaborando desde então.

Foi nesta sequência de eventos que surgiu o convite para participar no Prós e Contras. De espírito inconformado, Mariana Sottomayor apresentou-se no  programa como cidadã preocupada com o tema, até porque, apesar de ser bióloga molecular e celular , a sua área de especialização não está relacionada com o vírus, mas sim com a biologia das plantas. Nada que a impedisse de explicar, como um telespectador comentaria no Twitter, “em 10 minutos” o que não se conseguiu perceber em “horas a ver os telejornais”. “A partir daí tenho recebido muitos convites, a uns correspondo, a outros não consigo”, confessa.

Licenciada e doutorada em Biologia pela FCUP, Mariana Sottomayor passou pelo Departamento de Botânica da Universidade de Toronto, Canadá, e pelo Departamento de Fisiologia Vegetal da Universidade de Murcia (EspanhaI antes de voltar a “casa”. Atualmente, é também investigadora no Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da U.Porto (CIBIO-InBIO), onde se dedica a explorar as potencialidades das plantas que tanto podem ser tóxicas, como medicinais. Mais concretamente, tem focado o seu estudo na Catharanthus roseus (pervinca de Madagáscar), uma planta com propriedades antecancerígenas.

Aos 56 anos, a docente da FCUP divide agora o seu tempo entre as aulas, a investigação, e as colaborações pontuais com a revista Sábado.  Inspirada pelas sufragistas, “com a sua garra e luta” e que “venceram porque a razão estava do lado delas”, Mariana Sottomayor usa as palavras como arma para continuar a apelar ao uso da máscara e outros cuidados. E com o Natal à porta, fica o conselho: ” Cumpram os cuidados e depois esqueçam a COVID-19 e usufruam do momento, da companhia por pequena que seja este ano, do bacalhau, do espírito natalício! Há sempre motivos para ser feliz, por muito difícil que seja a situação”.

– Naturalidade? Porto

– Idade? 56 anos

– De que mais gosta na Universidade do Porto?

Da enorme diversidade que alberga, onde se podem encontrar pessoas que fazem quase todo o tipo de investigação que nos possa interessar, e contribuir para qualquer projeto multidisciplinar que se conceba! Uma diversidade onde brilham muitos espíritos criativos e onde, a cada momento, nos cruzamos com mentes que nos surpreendem, nos estimulam e nos ajudam a crescer.

– De que menos gosta na Universidade do Porto?

Do feudalismo impregnado que teima em persistir, e faz com que muitas decisões e ações permaneçam reféns de uma teia feudal de pequenos e grandes poderes que impedem, com frequência, desígnios mais elevados do que os de cada um, de cada grupo, de cada departamento ou de cada unidade orgânica.

Outro aspeto que me desgosta profundamente é a postura da UPorto em relação aos investigadores. O grande salto da qualidade da investigação científica nacional das duas últimas décadas deve-se, acima de tudo, a inúmeros cientistas de altíssima qualidade que o país conseguiu reter e atrair com contratos de investigador avulso, desenquadrados de qualquer carreira científica. Devido aos seus atributos, a UPorto conseguiu atrair um conjunto de investigadores particularmente talentosos, que fizeram subir a fasquia da qualidade científica da UPorto para um outro patamar de reconhecimento. No entanto, a UPorto não oferece qualquer oportunidade de carreira a esses investigadores, que dão também uma contribuição essencial para a docência do 1º ciclo e, muito particularmente, para o funcionamento dos 2º e 3º ciclos. Poder-se-á invocar a falta de recursos económicos, mas não se vê uma manifestação de vontade ou objetivos que faria toda a diferença e que é o primeiro passo essencial para se conseguir seja o que for. Seria de esperar mais do pensamento livre e obstinado que caracteriza a UPorto. E ainda espero, quero acreditar que há de acontecer!  

– Uma ideia para melhorar a Universidade do Porto? 

Incorporar progressivamente, de plenos direitos, um corpo de investigadores com possível partilha de responsabilidades de docência, que garanta a sustentabilidade futura da qualidade científica atingida, e proporcione dignidade profissional a quem tanto contribuiu para a construção da UPorto como a conhecemos atualmente. E que tem tanto para dar na reinvenção da U.Porto que os tempos que se avizinham vão exigir!

Como conseguir recursos financeiros para tal? Fazer brain stormings, hackathons, com tanta massa cinzenta brilhante na Universidade, de certeza que surgem estratégias consequentes. Desde já, poderia usar o que tem de mais valioso, a diversidade e qualidade de know-how científico, para criar plataformas de canalização eficiente desse know-how para a sociedade ao mesmo tempo que o rentabiliza. Ou seja: 1) uma plataforma que integre em rede todos os recursos científicos da U.Porto para oferecer programas de formação personalizados “a la carte”, de elevado custo, que vão ao encontro de interesses específicos de quadros empresariais, profissionais especializados, ou pessoas individuais com interesses particulares,  a UPorto Forma, e 2) uma plataforma semelhante mas dedicada à prestação de um serviço de resolução personalizada de qualquer problema que uma empresa possa ter e que exija know-how científico, a UPorto Serve.

 – Como prefere passar os tempos livres?

Os quê? O que é isso? Neste momento não sei o que isso é. Tenho que usar  a memória. Pois, quanto tinha disso, e não tinha a COVID-19 a chatear a molécula, o que eu gostava era de jantar com um maralhal de amigos, e acabar a noite com uma boa conversa, com os poucos que ficavam até ao fim, a acabar a última garrafa de vinho. Para além disso, gosto de quase tudo o que seja ao ar livre, com preferência para a montanha com mar à vista, e adoro dançar, mas tenho tido dificuldades em praticar, com ou sem COVID-19.

Resta-me sempre o descontrair, dizer disparates e gargalhar com a minha filha e o meu marido à volta do jantar, o que já não é pouco!

– Um livro preferido?

Pois, há vários que me impactaram ao longo da vida, mas aquele que resistiu à releitura através de todas as idades que atravessei até ao momento foi O Amor nos Tempos de Cólera do Gabriel García Márquez. É um livro com pequenos pedaços de humanidade sobre o amor e o desamor que sempre me deliciam. Mas talvez esteja para ser destronado por outro livro mais recente do mesmo autor, o “Viver para Contá-la”, em que este oferece um relato fantasioso da sua vida, cheio de uma humanidade luminosa, pujante e generosa, como só os latino-americanos conseguem transmitir (e viver?). Traço novo, este livro está imbuído da serenidade de quem está em paz com o seu passado o que, de alguma forma, sossega quem lê.

Vou alongar-me, mas descobri recentemente, com enorme espanto, o livro de Nelson Mandela Um Longo Caminho Para a Liberdade. É uma história absolutamente extraordinária e a maior lição de redenção que conheço, coroada por uma vitória conciliadora sobre um poder hediondo e aparentemente inexpugnável. É galvanizante e deveria ser de leitura e estudo obrigatórios nas escolas de todo o mundo. Estou segura que seria um passo enorme para um mundo melhor.

Um disco/músico preferido?

Gosto de tudo o que me soa bem ao ouvido ou ao pé, não sou muito esquisita. Quando se alia a música à poesia fico por vezes a pairar, como em “Ser Poeta” de Florbela Espanca/Trovante (… ser mendigo e dar como quem seja, Rei do Reino de Áquem e de Além Dor…) ou em “Ne me quite pas” de Jaques Brel (…des perles de pluie, venues de pays, oú il ne pleut pas…), só para dar dois exemplos.

Um prato preferido?

É horrível o que fazem aos patos, mas só de pensar numa fatia de “foie gras” com umas pedrinhas de flor de sal e umas pintas de compota de cebola, cresce-me água na boca. Foi uma das muitas descobertas que a minha ligação familiar a França me proporcionou. Mas não fica atrás de um robalo selvagem escalado na brasa de um qualquer restaurante de Matosinhos e acompanhado por uma batatinha a murro bem regada por azeite nacional.

Um filme preferido?

Depois de rever a memória, não tinha um ranking diagnosticado, é possível que o filme que mais me tocou e espantou tenha sido “Tudo sobre minha mãe” de Pedro Almodóvar. Se bem me recordo, voltei para casa em transe, emocionada de gratidão por um retrato tão forte do âmago maravilhoso da feminilidade.

Noutro registo, os filmes que vi mais vezes, também porque mos ofereceram em DVD, e porque são sempre irresistíveis, são os filmes da trilogia do Senhor dos Anéis.

– Uma viagem de sonho?

Qualquer ponto do planeta em que possa olhar a 360º e não vislumbrar qualquer vestígio de passagem humana.

Um objetivo de vida?

Ser feliz agora, neste momento, por tudo e por nada, só porque sim! Quanto mais não valha, como digo por vezes aos meus alunos, pensando na complexidade extraordinária da imensidão de eventos moleculares que ocorrem em cada momento, em cada uma dos nosso triliões de células, de uma forma espantosamente integrada, já é para ficarmos maravilhados, gratos e felizes, só pelo milagre de estarmos vivos!

Uma inspiração?

Uiii, tantas!! Só o ato de inspirar já me inspira!

Depois de ter ficado progressivamente embotada ao longo de anos de pressões profissionais desumanizantes, passei por um buraco fundo e negro há cerca de quatro anos que me levou a fazer “reset” da minha vida, pôr tudo em causa, e reerguer-me depois lentamente, assumindo o controlo das rédeas e não o contrário. Agora, cada dia me sinto melhor na minha pele e encontro inspiração por todo o lado.

Inspira-me olhar o céu, ver muito céu, horizonte longínquo.

Inspira-me olhar para as árvores e para as ervas, por daninhas que sejam.

Inspira-me enormemente o contacto com os alunos, a sua expectativa e candura, a sua vulnerabilidade, que sinto que tenho que respeitar e proteger.

Inspiram-me a minha filha e o meu marido, todos os dias, de muitas maneiras!

(para descanso alheio, tenho que confessar que também me enervam, mas não todos os dias, felizmente).

Na ordem das grandes inspirações, inspiram-me as sufragistas! A garra e a luta das sufragistas! Como não esmoreceram até à vitória final, contra tudo e contra todos! Perseveraram e venceram porque a razão estava do lado delas. E a luta continua, pelo respeito e equidade que ainda estão em falta para tantos seres humanos, por “delito” de género, raça, credo, formas de viver o amor, origem geográfica, e tantos outros motivos que não são motivo.

O projeto da sua vida…

Um Instituto de Investigação de ponta inteiramente dedicado à Biologia Funcional de Plantas no Campus de Vairão da UPorto. A Biologia Funcional de Plantas é uma área científica que é absolutamente essencial para o futuro da sustentabilidade planetária a nível global e muito particularmente a nível nacional e regional. No entanto, ao contrário do que acontece nos restantes países europeus, a começar pela nossa vizinha Espanha, Portugal possui recursos de investigação mínimos na área, que é cronicamente ignorada pelas agências nacionais de financiamento da ciência. Vairão reúne condições únicas para albergar um Instituto de ponta em Biologia de Plantas, capaz de injetar CONHECIMENTO precioso para a gestão inteligente e novas oportunidades de exploração económica, quer dos nossos recursos vegetais naturais, quer dos nossos recursos agronómicos. É o Laboratório GoPlanta e é um sonho partilhado por todos os meus colegas do grupo PLANTBIO no CIBIO.