Com mais de 45 anos de ligação à FMUP, José Agostinho Marques foi diretor da faculdade entre 2007 e 2014. (Foto: FMUP)

Natural de Eira Vedra (Vieira do Minho), José Agostinho Marques considera-se um homem rural desde o nascimento. Por isso, não é de estranhar que, desde cedo, se tenha habituado a conjuntar a prática (exigente) da medicina com uma outra grande paixão: a agricultura, a que se dedica na casa que mantém na sua terra natal, e que lhe permite viver a vida em perfeito equilíbrio.

São mais de 45 anos que ligam Agostinho Marques à Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), divididos entre a carreira académica e científica. Foi nesta instituição que se formou, primeiro como licenciado (1973) e mais tarde como doutorado (1987), e onde deu início à sua carreira de docente. A opção pela Pneumologia surgiu “um pouco fruto do acaso”. A sua passagem pela FMUP fica, também, marcada pelo cargo de diretor que exerceu durante dois mandatos (2007-2014) e que, segundo o próprio, lhe permitiram “ver a instituição e as suas gentes com outros olhos”.

No passado dia 1 de julho, proferiu a sua Última Lição intitulada “Como Será a Medicina no Meu Tempo?”, que assinalou a sua jubilação como Professor Catedrático da FMUP. Realizada numa Aula Magna da FMUP com casa cheia, a sessão ficou marcada pelos muitos agradecimentos e pela partilha de alguns episódios da sua carreira académica e científica. “A vida feliz que tive até este momento, devo-o às pessoas que a partilharam comigo”, confessou.

No início de julho, deu a Última Lição enquanto professor da Faculdade de Medicina. (Foto: FMUP)

Defensor da relação médico-paciente, que considera “uma conquista civilizacional de que não podemos largar mão”, o agora professor catedrático jubilado deixou um alerta para as novas realidades que os futuros médicos vão enfrentar. Com o “crescimento” da inteligência artificial e da biotecnologia, é “fundamental preservar as conquistas civilizacionais fundamentais, nomeadamente, a relação médico-doente hipocrática, porque acredito que é intemporal e corresponde a uma necessidade profunda da alma humana.”

José Agostinho Marques foi somando distinções pela sua contribuição científica ao longo da carreira, sendo de destacar a Medalha de Serviços Distintos, Grau Ouro, atribuída em 2014 pelo Ministério da Saúde, pela prestação de serviços relevantes à Saúde Pública. Tem contribuído, igualmente, para várias sociedades e associações científicas, como a Sociedade Portuguesa do Pulmão, da qual é presidente do Conselho Geral, a European Respiratory Society (ERS) ou a Sociedade Galega de Patologia Respiratória, da qual é Sócio Honorário.

– Naturalidade? Eira Vedra (Vieira do Minho)

– Idade? 70 anos

– De que mais gosta na Universidade do Porto?

A Universidade foi, para mim, uma descoberta recente. Até iniciar funções de direção na FMUP, vivia centrado na dupla Faculdade/Hospital, muito longe da Universidade do Porto. Nas funções de direção, conheci o conjunto da Universidade e passei a gostar muito de contemplar as virtualidades de haver tanta diversidade de saber e experiência. Para além da questão dos afetos, que escapam à racionalidade, a Universidade é, na minha opinião, um mundo de novas oportunidades.

– De que menos gosta na Universidade do Porto?

O que mais me desagrada é constatar uma entidade fragmentada em 14 escolas e mais uns tantos laboratórios, muito pouco articulados.

– Uma ideia para melhorar a Universidade do Porto? 

Para ser uma Universidade focada e dirigida para os objetivos estratégicos que a possam colocar e manter na modernidade, a Universidade deveria reorganizar o modelo de gestão em duas linhas primordiais. A primeira seria a supressão de redundâncias governativas por uma infinidade de escolas; a segunda seria a reforma do sistema de governação. Tem havida muita confusão à volta da ideia de autonomia. A Universidade precisa de autonomia de pensamento e autonomia na investigação e no ensino, mas a gestão precisa de ser muito mais empresarial. Repare-se que a eleição do reitor, por um pequeno conselho geral, o deixa prisioneiro das pequenas maiorias para cada reforma que proponha num órgão, onde os milhares de professores, estudantes e técnicos se sentem muito pouco representados. Repare-se, ainda, que a democracia interna por escolas e departamentos parte completamente a coesão do processo de governação. Cada diretor de escola e departamento responde perante os seus eleitores locais, antes de responder à hierarquia formal. Este modelo serve para uma rotina sem ambição, mas não ajuda nada a realizar um qualquer programa de reforma profunda que toque em situações de conforto, como sempre acontece nos processos de desenvolvimento. Quase, “fatalmente”, um candidato a reitor que se apresente com um programa reformador não será eleito e, se o for, não terá condições de o executar. É disto que não gosto.

– Como prefere passar os tempos livres?

Sou um homem rural desde o nascimento. Comecei a vida numa quinta minhota. Na vida adulta, organizei uma pequena propriedade que me ocupa todos os fins de semana a trabalhar arduamente como lavrador. É o meu tempo perfeito.

Um livro preferido?

É muito difícil responder com verdade porque interesso-me, desde a juventude, pelos problemas da religião, história e literatura. Raramente leio um livro duas vezes, a exceção foi: “Quando os Lobos Uivam” de Aquilino Ribeiro.

Um disco/músico preferido?

Não uma música, mas duas: “Ne Me Quittes Pas” de Jacques Brel e “Sinfonia do Novo Mundo” de Antonín Dvořák.

Um prato preferido?

Apenas me desloco à Bairrada para almoçar.

Um filme preferido?

“Morte em Veneza” de Luchino Visconti.

– Uma viagem de sonho?

Viajei muito, felizmente. Sinto-me privilegiado cada vez que passo a muralha de Jerusalém.

Um objetivo de vida?

Sou homem sem fé religiosa e com forte convicção de que a racionalidade com que quero viver não deixa espaço às mensagens religiosas conhecidas. Limito-me a viver empenhado em contribuir, todos os dias, para a melhoria difusa do mundo, a pensar nos filhos e netos, nos meus e dos outros.

Uma inspiração?

Nenhum livro me inspirou como a Bíblia, pois condicionou o interesse pela história da nossa cultura, que amadureceu dentro e contra as religiões reveladas ocidentais (cristã, muçulmana e judaica). A Bíblia inspirou o meu gosto profundo pela história do processo religioso e pela tentativa de compreensão da necessidade universal do homem de ter um amparo divino, que o levou a criar milhares de deuses por toda a parte. Orientou os meus gostos de leitura e de lazer, uma vez que grande parte das viagens foram orientadas para lugares da própria Bíblia: em Israel, Jordânia, Egipto, Síria, Líbano e Pérsia. Também é o livro mais presente no meu domicílio, sempre na mesa de cabeceira para ser consultado depois de inúmeras leituras.

O projeto da sua vida…

Aos 70 anos, o que deixa de fazer sentido é a ideia de projeto, por falta de horizonte temporal. Quero ter saúde e algum dinheiro para poder continuar a tratar doentes, viajar e, sobretudo, cultivar (com muito atraso) a vida familiar.

Uma breve mensagem para os futuros médicos da sua especialidade…

Os futuros médicos serão confrontados com um mundo em mudança muito rápida e com grandes alterações da própria profissão, devido à revolução em curso da inteligência artificial e da biotecnologia. Desejo que se preparem para mudanças e participem nelas como protagonistas, de modo a preservar as conquistas civilizacionais fundamentais, nomeadamente, a relação médico-doente hipocrática, porque acredito que é intemporal e corresponde a uma necessidade profunda da alma humana.