Vamos caminhar pelo universo  da tragédia grega, levados pela mão ou, mais concretamente, pelo traço de Álvaro Siza. A leveza da pluma faz-se traço fino, conduzido pela precisão de um bisturi. Nesta viagem, o reconhecido arquiteto e antigo professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto (FAUP) foi convocado por duas personagens do dramaturgo grego Sófocles (496 a.C. – 406 a.C.) que habitam o imaginário coletivo da humanidade: Édipo Rei e Antígona. O que vamos ver na Casa Comum (à Reitoria) da Universidade do Porto a partir de 28 de fevereiro são desenhos de Álvaro Siza, que serviram de inspiração a textos do escritor Valter Hugo Mãe.

A memória inteira do mundo

Quando se bate a porta de casa e o dia fica lá fora, insufla-se o tempo e o espaço da imaginação. São universos ancorados em “valores imortais da nossa coletiva humanidade”, diz-nos o arquiteto António Choupina, que tantas vezes observou o desenlace do traço do mestre.

Álvaro Siza sempre leu muito, “Hemingway, Falkner e tantos outros”, desde muito jovem, aos 16 anos, nomeadamente “no elétrico que apanhava em direção à Faculdade de Arquitetura da U.Porto”. É é “sempre à noite” que estas narrativas, “não arquitetónicas” saltam para o papel, que é como quem diz, para o caderno…

Ora é, precisamente, esse o caderno do primeiro Pritzker português, em forma de harmónica de acordeão, que vamos ter na Casa Comum. Só que a uma escala bem mais ampliada. Vamos caminhar, lado a lado, pelo imaginário de Sófocles, reinterpretado por Álvaro Siza.

Retirado do caderno de desenhos de Álvaro Siza Vieira

É a tragédia grega, mas com adaptações. Não se conte, por exemplo, com o desenho da carruagem que Édipo encontra quando sai de Corinto em direção a Tebas. O veículo que vamos encontrar faz-nos antes lembrar um Volkswagen Carocha, ou mesmo, “uma mescla do Fiat de Siza com o Cadillac limusina que o seu pai alugava nos verões de 1940-50”.

Nasceram em 2014, os desenhos que contam a história de Édipo Rei, destinado à maldição de matar o próprio pai e casar com a mãe. Deste leito incestuoso, esposa/mãe, nasceram quatro filhos/irmãos, nomeadamente Antígona. Ora, 2014, recorda António Choupina, foi precisamente o ano em que Siza tomou a difícil decisão de qual o destino a dar a dar seu arquivo de arquitetura (Serralves, Gulbenkian e Centro Canadiano de Arquitectura.

Possivelmente no “subconsciente”, diz-nos Choupina, o arquiteto a recorreu a uma personagem da mitologia, Édipo “que descobre não ter controlo sobre o seu próprio destino”.

Sempre ao final do dia, os desenhos sobre a Antígona surgem em 2019, mas em Berlim, enquanto preparava a exposição SIZA – Inédito & Desconhecido. Álvaro Siza, acrescenta Choupina, “é o instrumento vivo de um conjunto infindável de experiências, histórias e da memória inteira do mundo que vai construindo”. E mais recentemente, quais serão as preferências de leitura do mestre? Por que universos se escoa a curiosidade? “Agora… São os Haikus”, responde António Choupina. Ou seja, o sentido da procura é bussolado pela “ideia de síntese. Também no modo de escrita”.

Os desenhos de Álvaro Siza Vieira com textos de António Choupina serão alvo da edição de um livro com a chancela da Coral Books.

Retirado do caderno de desenhos de Álvaro Siza Vieira

O gesto puro que é esplendor do pensamento

“É a criação de um vocabulário para o que é apenas de ver”, escreve Valter Hugo Mãe. São figuras apuradas numa “síntese absoluta, à procura de uma caligrafia do corpo”. A linha é “tão magra que atravessa o leite puro da página, sem perder sentido. Uma quebra amável”, pode ler-se nos textos criados por Valter Hugo Mãe.

As imagens obedecem ao “ímpeto do objeto puro, o gesto puro, o esplendor do pensamento”.  Sendo “escultura” que ganha forma, reinterpretadas por Álvaro Siza, as tragédias “são tumulares”. Tão “limpas” como “as suas casas”

Édipo/Antígona – Desenhos de Siza Vieira com textos de Valter Hugo Mãe inaugura a 28 de fevereiro, às 18h00, na Casa Comum e prolonga-se até 6 de maio.