[Texto retirado da revista U.PORTO ALUMNI n.º 9, publicada em dezembro de 2009]

É um dos nomes mais respeitados e internacionalmente mais conhecidos da investigação da U.Porto. Maria de Sousa, professora do ICBAS e coordenadora de uma equipa de investigação no IBMC, é um caso raro na ciência portuguesa sobretudo por dois motivos: tem formação em Medicina e faz investigação; é mulher e têm-se destacado no estrangeiro; e mais ainda foi responsável, há cerca de 40 anos, por uma descoberta que se traduziu num avanço importante no campo a imunologia e do funcionamento do sistema linfático.

Desde então, formou dezenas de investigadores, hoje colocados nas mais destacadas instituições da investigação mundial; esteve na origem de um programa pós-graduado de renome mundial (GABBA); ajudou a implantar em Portugal o actual sistema de avaliação (externa) dos centros de investigação em Ciências da Saúde; e recebeu o Prémio Estímulo à Excelência do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.

A 16 de Outubro, aos 70 anos, jubilou-se da actividade docente no ICBAS, com uma cerimónia intitulada “A School without Walls” (“Uma escola sem muros”).

– Logo no início da sua carreira, no final da licenciatura em Medicina, tomou uma decisão muito invulgar para a época: dedicar-se à investigação. O que a levou a tomar essa decisão?

Tomei-a sem qualquer dúvida. Primeiro foi por uma questão de oportunidade. Havia um grupo de pessoas, na Faculdade de Medicina de Lisboa, que começava a pensar o que viria a ser o Instituto Gulbenkian de Ciência. Na altura, já fazia uns trabalhos com coelhos e, no último ano, entre o trabalho final de índole clínica e de investigação, eu optei pelo último.

Por outro lado, era também uma necessidade minha. Naquela época havia muito pouco para oferecer ao doente… Falávamos muito com o doente, dávamos a atenção possível, mas contra os problemas de saúde havia a cortisona, alguns antibióticos e pouco mais… Para ajudar verdadeiramente as pessoas era necessário fazer investigação.

Curiosamente, há dias tive a reler a minha tese de licenciatura – está tão longe no tempo que parece que foi feita por uma estranha! – e, no fim, escrevi que há evidência da relação entre o fumo do tabaco e o cancro do pulmão, mas para perceber com mais rigor seria necessário realizar trabalho experimental. Foi isso que fui fazer em Londres: aprender a fazer experiências. Sabia fazer pouca coisa, tinha uma preparação muito limitada. Mas era uma excelente microscopista e percebeu-se isso, o que, aliás, veio a ser muito importante na minha carreira.

– Depois, partiu para o doutoramento…

Não! Fiz uma descoberta que é muito mais importante! Foi nesse período em Londres, como bolseira da Gulbenkian, e essas descobertas foram consideradas muito importantes. Uma foi o mapeamento dos sítios onde vivem as células T (linfócitos) e ali não vivem em animais sem timo. A outra parte demonstrou que essas células iam para aqueles locais. É da combinação das duas experiências que se conclui que uma certa área é habitada por células que vêm do timo, o que é importante para a época, dado que não se sabia se todos os linfócitos vinham do timo.

Também se achou surpreendente que uma mulher portuguesa fizesse alguma coisa de jeito na investigação e no estrangeiro. Na altura, tive muitas ofertas para trabalhar fora do país. Mais tarde, aceitei um lugar de Leitora (equivale a Professora Auxiliar em Portugal) de Imunologia na Universidade de Glasgow. Eu era tão convencida que não queria fazer doutoramento! Foi a professora com quem eu trabalhava que me convenceu a fazê-lo.

– A descoberta que fez em meados dos anos 60 perdurou… Já lá vão 40 anos!

Pois… Mas é extraordinário! Normalmente, quando se descobre algo, as tecnologias que vão surgindo mostram novas facetas do que se descobriu e a importância da descoberta inicial relativiza-se. Eu tive muita sorte, porque aquilo que eu vi continua lá, apesar das fluorescências e das novas cores que decorrem das técnicas usadas actualmente.

Mãe da avaliação externa em Ciências da Saúde

– Esteve no Instituto Sloan Kettering de Investigação em Cancro (SKI), criou aí uma equipa sua, mas acabou por vir para Portugal estudar a relação entre o ferro e o sistema imunitário… E deixou uma promissora carreira académica nos EUA e de coordenação de equipas de investigação, não é verdade?

De volta a Portugal não, porque nunca tinha trabalhado verdadeiramente em Portugal e nunca tinha pensado nisso. Considero que vim trabalhar para cá e não que regressei. Apesar do passo seguinte, se tivesse seguido a progressão normal, ser a direcção de uma equipa maior e de ter mesmo recebido esses convites, achei que tinha ainda muito para fazer na investigação e que era suficientemente nova para continuar. O cargo de direcção e de professor catedrático nos EUA implica assumir um conjunto de tarefas que não me atraíam, entre as quais a angariação de fundos. Por outro lado, nos Estados Unidos era difícil encontrar casos de hemocromatose (doença por excesso de ferro no organismo).

– Correu um risco ao vir para Portugal…

Visto retrospectivamente… Só não foi um risco porque continuava a ser nova para, se corresse mal, poder ir embora novamente. Mas, visto a esta distância, parece ter sido um tanto disparatado, porque vim sozinha… Não foi um disparate! Se tivesse sido ainda tinha uns três ou quatro anos para voltar. Mas as coisas correram muito bem cá.

– Teve também um papel fundamental na implantação da avaliação externa dos centros de investigação portugueses – uma tarefa complexa…

Fui convidada pelo professor Mariano Gago para coordenar esse processo na área das Ciências da Saúde, na JNICT [Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica]. Visto retrospectivamente, foi um risco, como quando decidi vir para Portugal. Ainda houve algumas resistências… Colegas que achavam que as apresentações – os pedidos eram poucos e podíamos fazer apresentações públicas – deviam ser feitas em português, porque estávamos em Portugal. Havia equipas que estavam habituadas a ser financiadas, mas que o deixaram de ser com a avaliação externa. O presidente deve ter notado mais essas resistências… Limitei-me a fazer como sempre me habituei a fazer no Reino Unido e nos EUA. Se não fosse assim, não fazia!

– Analisado a esta distância, foi também um êxito. A ciência em Portugal evoluiu muito desde então!

Foi um êxito extraordinário. O mérito está muito na inspiração do professor Mariano Gago, como então presidente da JNICT, depois também no meu contributo e, finalmente, na aceitação pela comunidade científica. Hoje é rotina.

Se fosse hoje, provavelmente, eu não faria tão bem como fiz na altura, porque, nesse período, conhecia apenas a comunidade científica portuguesa publicada nos artigos científicos. E não era tanta como se pensava! Não se pode fazer de outra maneira, sobretudo em países pequenos e periféricos. Portugal far-se-ia respeitar se o processo avançasse. Naquela época era espontâneo, mas foi tornado imposição legal durante o primeiro ministério liderado pelo professor Mariano Gago.

A nova política para a Ciência começou em 1987 e para ela contribuíram três factos importantes: introduziu-se a avaliação externa; investiu-se imenso em bolsas de doutoramento – iniciativa do presidente da JNICT, contra a opinião de todos os que o rodeavam –; e organizou-se um grande fórum científico, com cientistas portugueses e estrangeiros, no Forum Picoas. Mas os resultados não se podem ver no dia seguinte.

Falta dar prioridade ao colectivo

– Há alguns centros de investigação que já denotam preocupação em coligarem-se para ganharem escala suficiente para actuarem internacionalmente, mas são poucos a nível nacional…

Soube agora, através dos jornais franceses, da publicação do mais recente ranking de Shangai. Os franceses estavam com a crista muito caída porque só tinham três universidades nos primeiros 100 lugares. Como sabe, a U.Porto surge em 442, num total de 500. À U.Porto e às universidades portuguesas em geral (excepto Coimbra, talvez) falta noção de corpo: nuns ainda se sente, como o IBMC, o IPATIMUP, etc. Nunca se ouve falar do instituto X ou Y, de Harvard, Stanford, ou Berkeley (gargalhada)!… Ainda somos, de certo modo, muito provincianos. Mesmo assim, Portugal mudou radicalmente nas últimas décadas e há gente nova de grande qualidade, mesmo nas novas universidades.

Acho que não há bons professores, há bons alunos. E também não há bons programas, mas sim bons estudantes. Temos tido imensa sorte com a qualidade dos nossos estudantes, desde que comecei a trabalhar no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), em 1985, e depois com a criação do Programa Pós-Graduado em Biologia Básica e Aplicada (GABBA), em 1996, têm sido uns 10 a 12 por ano, em média. Só falta aparecer um rico (risos)!

– Pedia-lhe agora um olhar retrospectivo sobe o seu percurso. A investigação que produziu; os investigadores que formou directa ou indirectamente; o contributo que deu para o reforço do sistema científico português, ao nível das Ciências da Saúde… É um percurso que faz uma cientista sentir-se realizada, não?

Sim…É extraordinário! Devo confessar que é verdade. Mas, para isso, é preciso não ter tempo para olhar para trás. Só agora é que me dei ao luxo de olhar para trás. Mas gostaria que se tirasse uma lição disto: é preciso que as novas gerações de investigadores e de políticos percebam que se conseguiu chegar a um patamar a partir do qual o único caminho possível é a subida para patamares de melhor qualidade. Nas ciências em geral, mas sobretudo nas Ciências da Saúde, é crucial a ligação com a vertente aplicada, neste caso a prática da Medicina. Na formação em Medicina é essencial ter formação científica.

– Na sua última aula referiu a importância do conceito que designou “i-learning”: “i-nsatisfação com o que se sabe e como se sabe; i-nsatisfação com os meios que não vos permitem estar verdadeiramente actualizados com novas técnicas; i-nsatisfação com o que só interessa para passar exames; i-nsatisfação por estarmos a formar médicos que, sem educação científica, ficarão cativos da compra e venda de medicamentos”.

É preciso estar insatisfeito, sabe!? Os portugueses, tal como os restantes povos dos países menos desenvolvidos, têm todos o mesmo problema: ficam satisfeitos com pouco. Nos jornais franceses, como já disse, percebeu-se uma grande insatisfação por apenas três universidades francesas estarem entre as 100 melhores do mundo. No entanto, é preciso distinguir entre o lamento passivo – que é muito comum em Portugal – e a insatisfação que leva à acção. Por outro lado, é também preciso que se perceba que, quanto mais levarmos longe o nome da Universidade, mais respeitados seremos individualmente. Serei melhor, se o meu vizinho for também melhor.

Isto é também um problema agora com a adequação do nosso Programa Pós-Graduado [GABBA] a Bolonha. Até agora conseguíamos sensibilizar para a melhoria do colectivo, mas com a adequação a Bolonha passou a ser mais difícil.

– Mas prioridade ao interesse pessoal em detrimento do colectivo é um problema da sociedade em geral, nomeadamente da Portuguesa…

É, mas por isso é que a formação científica é muito importante. A ciência tem obrigação de contribuir com a lição de que o êxito mais importante é o da constelação, por mais estrelas que apareçam. Por outro lado, temos de aprender com as nossas raízes e os que valores à nossa volta. O Abel Salazar é uma figura extraordinária também por isso. Se for à Sala de Reuniões do ICBAS, as paredes estão cheias de retratos de cientistas contemporâneos por Abel Salazar, o que demonstra a sua admiração por esses homens. É o caso de Ramón y Cajal, retratado neste busto também da autoria de Abel Salazar, Prémio Nobel da Medicina em 1909 com os estudos sobre o neurónio.

A importância de ver diferente

– Na sua área de investigação actual, as relações entre a concentração de ferro e o sistema imunitário, que gostaria de ver clarificado nos próximos tempos?

Nós estudamos o ferro numa perspectiva que nem os hematologistas – que se interessam pela falta de ferro, a anemia –, nem os hepatologistas – que estudam a acumulação no fígado – o fazem; e os imunologistas, normalmente, não estudam o ferro. Temos evidências experimentais, através do trabalho da Dra. Graça Porto, no Hospital de Santo António, de que doentes com um nível baixo de linfócitos têm um nível alto de ferro no sangue. O Jorge Pinto, investigador pós-doutorado que é meu colega no IBMC, tem em mãos experiências muito interessantes que têm a ver com uma proteína chamada epsidina e que podem demonstrar que os linfócitos também protegem o organismo do excesso de ferro.

Meteu-se-me esta questão do ferro na cabeça, que outros não viram, e temos os instrumentos para perceber se o que pensamos está certo ou errado. Os cientistas, ao contrário do artista e do escritor, sujeitam-se à discussão sobre o que fazem. A ciência é de uma humildade intelectual enorme! Faz-se, não para se ser reconhecido, mas porque se tem gosto em fazer. É uma actividade bastante enriquecedora e educativa, porque esta atitude deve aplicar-se a outros campos da vida. A pessoa tem que estar atenta, fazer escolhas e estar preparada para a eventualidade da escolha correr mal. É preciso também acreditar nos mais novos. Em Portugal temos gente nova muito boa! Mas o sucesso depende dos impulsionadores, que criam as condições para os produtores, e dos produtores, que são capazes de pensar criativamente.

Cientista de craveira internacional

Maria de Sousa formou-se em Medicina pela Faculdade de Medicina de Lisboa. Foi Leitora na Universidade de Glasgow, Escócia, onde fez o doutoramento em Imunologia; Professora Associada na Escola de Estudos Pós-Graduados de Cornell Medical College, em Nova Iorque, EUA; e, simultaneamente, Membro Associado e Directora do Laboratório de Ecologia Celular do Instituto Sloan Kettering de Investigação em Cancro (SKI), também na “Big Apple”. Actualmente acompanha um estudante de doutoramento em Nova Iorque, cidade onde ainda tem casa.

Dois artigos publicados em 1966 lançaram internacionalmente a carreira de Maria de Sousa. O primeiro destes artigos recebeu mais de 500 citações e o segundo próximo de uma centena. Em 1971, descobriu um fenómeno a que deu o nome de ecotaxis e que designa a capacidade de células de diferentes origens migrarem e organizarem-se em áreas bem delineadas dos órgãos linfoides periféricos.

Posteriormente, em 1978, a possível função do sistema imunológico na protecção da toxicidade do ferro conduziu a estudos do sistema imunológico em doentes com uma doença genética de sobrecarga de ferro, a hemocromatose hereditária. Foi esta linha de investigação que a trouxe para o ICBAS e para a U.Porto, em 1985. Constituiu, então, uma equipa repartida pelo referido instituto, pelo Hospital Geral de Santo António e pelo Instituto de Biologia Celular e Molecular (IBMC). Mas nem só de investigação científica se faz a vida de Maria de Sousa, alargando-se também à cultura e à sociedade que a rodeia, sendo membro fundador do projecto “Porto Cidade de Ciência”.