Os órgãos vestigiais, como é o caso do apêndice no ser humano, sempre foram motivo de enorme discussão entre cientistas e motivam ainda hoje a curiosidade de todos. Para que servem? Como surgem? Porque existem? Serão (ainda) funcionais?

Num estudo agora publicado no Journal of Molecular Evolution, investigadores do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental da Universidade do Porto (CIIMAR-UP) usaram o poder do estudo dos genomas, nomeadamente das preguiças, para descobrir que órgãos são efetivamente funcionais ou vestigiais, tomando como caso de estudo a glândula pineal (responsável pela produção de melatonina, a hormona do sono). O estudo demonstra de que forma o ambiente ajuda a modelar o funcionamento daquele órgão e revela que, afinal, apesar da “má-fama” provocada pelo seu nome, as preguiças não produzem a hormona do sono, uma vez que a sua glândula pineal revelou-se ser vestigial.

Entender de que forma um determinado órgão se modifica ao longo do tempo, e como como pode até tornar-se uma estrutura vestigial, é uma questão fascinante na Ciência, que remonta ao trabalho de Charles Darwin no clássico “A Origem das Espécies”. Para responder a esta pergunta, o uso crescente de dados moleculares tem sido cada vez mais comum, dado que as alterações morfológicas profundas, como é o caso do aparecimento de um órgão vestigial, se refletem obrigatoriamente em “assinaturas” no ADN das espécies analisadas.

Um exemplo de um órgão na qual tem sido continuamente debatida a respetiva funcionalidade é a glândula pineal, estrutura presente em mamíferos dos quais se incluem os Xenarthra – grupo composto pelas preguiças, os tatus e os papa-formigas – e que é responsável pela síntese e sinalização da melatonina, hormona com um papel fundamental no sono e na manutenção dos ritmos circadianos.

Estudos anatómicos nas espécies do grupo Xenarthra têm apresentado observações contraditórias: enquanto que algumas destas espécies apresentam uma glândula pineal bem definida, noutras este órgão foi descrito como estando ausente. Esta discrepância nas observações não permite esclarecer se o órgão, mesmo que presente, é ou não funcional, fazendo surgir a necessidade de averiguar este assunto mais detalhadamente.

O poder da bioinformática

O estudo Functional or Vestigial? The Genomics of the Pineal Gland in Xenarthra coautorado pelos investigadores do CIIMAR, da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP), do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (MARE, ARDITI) e do Observatório Oceânico da Madeira (OOM) Raul Valente, Filipe Alves Isabel Sousa-Pinto, Raquel Ruivo e L. Filipe C. Castro, permitiu a utilização de ferramentas bioinformáticas para aferir sobre a funcionalidade da glândula pineal neste grupo de espécies.

O estudo demonstra que, apesar deste órgão estar presente em alguns xenartros, os genes relacionados com a síntese e sinalização de melatonina, a principal função da glândula pineal, estão ausentes. A perda destes genes demonstra que o órgão não é funcional e, portanto, a glândula pineal neste grupo de espécies é um órgão vestigial.

Segundo o investigador do CIIMAR e da FCUP Raul Valente, primeiro autor do trabalho, “o uso de ferramentas bioinformáticas para o estudo de genes diretamente ligados à função de uma determinada estrutura constitui uma abordagem poderosa para se perceber se estamos perante um órgão funcional ou vestigial. Esta questão reveste-se de uma importância acrescida em espécies cujas observações anatómicas apresentam resultados contraditórios”. Esta é uma perspetiva que ainda tinha sido pouco explorada em estudos anteriores, contudo facilmente aplicada em casos onde há discordância relativamente ao estado funcional de um certo órgão.

Porque é que um órgão deixa de ser funcional?

A perda da funcionalidade da glândula pineal e suas implicações fisiológicas tinham sido anteriormente encontradas em baleias e golfinhos, cujo sono é muito especial. Agora neste trabalho os investigadores encontraram um padrão de perda muito semelhante em Xenarthras mas que foi considerado uma resposta adaptativa para ultrapassar as limitações ecológicas e comportamentais apresentadas por estes animais. Na verdade, as espécies deste grupo, como é o caso das preguiças, têm uma pobre capacidade de regular a temperatura corporal. Assim, ao apresentarem ritmos biológicos alternativos aos ritmos circadianos poderiam reduzir os seus custos energéticos quando confrontados com eventuais condições ambientais desfavoráveis.

Filipe Castro, autor sénior do trabalho afirma: “O mais curioso é que, ao expandirmos a análise para outros mamíferos, conseguimos perceber que a perda destes genes também foi observada em manatins e dugongos, pangolins e colugos e ainda em Cetáceos. Assim, a perda de função da glândula pineal parece ser comum entre espécies com hábitos muito distintos. No entanto, todas estas linhagens de mamíferos são compostos por espécies constantemente confrontadas por desafios térmicos: seja por viverem em meio aquático ou por serem, à semelhança dos Xenarthra, animais homeotérmicos imperfeitos, ou seja, com dificuldades em ajustar a sua temperatura corporal”. Um exemplo notável de evolução paralela.

Agora, sabendo que a perda de função da glândula pineal tem repercussões profundas na manutenção dos ritmos circadianos, a pergunta mais óbvia para o futuro é entender que outro tipo de adaptações ao nível molecular estes animais sofreram para permitir o surgimento de tais padrões de atividade invulgares.