Um consórcio internacional liderado por uma equipa do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental da Universidade do Porto (CIIMAR-UP) conseguiu sequenciar, pela primeira vez, o genoma do mexilhão-de-rio. Publicada na revista DNA Research, da prestigiada Oxford University Press, a descoberta constitui um primeiro – mas crucial – passo para o conhecimento da espécie (cujo nome científico é Margaritifera margaritifera) conhecida pelas pérolas que “esconde” no seu interior.

“Construímos um catálogo de toda a informação genética da espécie”, uma espécie de “livro aberto” que permitirá alavancar os estudos de conhecimento e conservação da espécie”, explica André Gomes-dos-Santos, investigador do CIIMAR e um dos três cientistas da U.Porto envolvidos na descoberta, juntamente com Elsa Froufe (CIIMAR) e Manuel Lopes-Lima (CIBIO-ICETA).

Apesar de existirem cerca de 800 espécies de mexilhões de água doce em todo o mundo, o genoma do mexilhão-de-rio (Margaritifera margaritifera) é apenas o quarto a ser sequenciado, sendo também um dos mais completos. O tamanho do genoma é pouco menor do que o genoma humano e um dos maiores entre os bivalves e permitiu caracterizar pela primeira vez em mexilhões de água doce, os genes Hox, que são um conjunto de genes fundamentais no desenvolvimento de todos os animais e, portanto, essenciais para compreender a sua evolução.

O genoma agora disponibilizado não é só o primeiro genoma do mexilhão-de-rio, mas também o primeiro genoma dentro da família onde esta espécie está incluída – Margaritiferidae – que é um dos grupos de espécies mais ameaçados em todo o mundo.

“Este trabalho abrirá portas para que possamos compreender um pouco melhor os fatores genéticos essenciais para otimizar e guiar a proteção e conservação destas espécies, tais como os genes envolvidos na resposta a poluentes e aos efeitos das alterações climáticas” indica André Gomes-dos-Santos.

Ainda segundo o investigador, “o genoma do mexilhão de rio agora obtido vai também contribuir para o estudo alargado dos impactos das alterações climáticas”. Com efeito, “iniciamos recentemente um projeto onde vamos sequenciar mais três genomas de espécies europeias a fim de estudar como as alterações climáticas poderão vir a afetar a sobrevivência destas espécies nos climas Mediterrânicos, por toda a Europa”.

Uma pérola em 3000 mexilhões

O uso de pérolas ou do material precursor da concha, isto é a madrepérola, é antigo. O primeiro uso conhecido de madrepérola decorativa data de 4200 A.C. no Egito, mas as pérolas só se tornam populares por volta de 600 A.C. Antes da chegada das pérolas de espécies marinhas à Europa, a maioria era colhida de um bivalve de água doce comum, o mexilhão-de-rio, Margaritifera margaritifera, onde geralmente apenas um em 3000 mexilhões-de-rio contem pérolas.  

Este mexilhão teve por isso um papel fundamental no negócio de pérolas por toda a Europa durante séculos. Os vestígios da sua importância são evidenciados pelo uso destas pérolas em joias das famílias reais do Reino Unido, Suécia, Áustria e Alemanha e no famoso vestido de 32 000 pérolas da Rainha consorte de França Maria de Médici no início do século XVII.

Com a massificação da produção de pérolas marinhas durante o século XX, a relevância cultural do mexilhão-de-rio tem vindo a diluir-se. Contudo, o crescimento da população humana e industrialização da Europa durante o século XX trouxeram uma crescente pressão sobre os ecossistemas de água doce, causada pelo aumento da poluição, alteração dos habitats, construção de barreiras físicas, introdução de espécies invasoras e, claro, as alterações climáticas.

Tudo isto tem resultado num declínio global da diversidade de água doce, sendo o mexilhão-de-rio um dos grupos mais fustigados por estas ameaças. Hoje a espécie encontra-se classificada pela IUCN como Criticamente em Perigo (CR) na Europa, incluindo em Portugal onde pode ser apenas encontrada em alguns rios do norte do país.

As pérolas são pedras preciosas fascinantes que povoaram o imaginário humano durante milénios. (Foto: DR)

Aposta na conservação do mexilhão-de-rio

A espécie tem por isso sido alvo de inúmeros projetos de investigação e programas de reprodução em cativeiro para a sua reintrodução e conservação em vários países Europeus. Apesar disso, pouco se sabe sobre os processos genéticos e biológicos que controlam a interação da espécie com o ecossistema e consequentemente asseguram a sua sobrevivência.

É precisamente essa lacuna que o consórcio internacional liderado pelo CIIMAR pretende colmatar. “A publicação deste genoma é extremamente importante pois irá identificar os traços biológicos e fisiológicos que nos permitirão identificar os pontos críticos para melhoramento dos programas de conservação e sobrevivência da espécie, não só em Portugal, mas no mundo”, refere Manuel Lopes-Lima, que é também o coordenador internacional da lista vermelha de espécies de bivalves de água doce para a IUCN.

Nos últimos 10 anos a equipa de trabalho do grupo Aquatic Ecology and Evolution (AEE) do CIIMAR tem contribuído significativamente para preencher as lacunas de conhecimento sobre a história evolutiva e características biológicas dos mexilhões de água doce, através de uma série de projetos e colaborações nacionais e internacionais. Contudo, até agora estes estudos focaram-se apenas em regiões pré-selecionadas do genoma das espécies. Com esta abordagem, obteve-se primeira vez acesso a toda a informação genética de um organismo! E tornamos esta informação publicamente disponível.

O potencial tão promissor desta linha de investigação é ainda reconhecido pela investigadora Elsa Froufe, do CIIMAR: “O objetivo inicial desta linha de investigação iniciada em 2012 começou por ser apenas estudar a Biodiversidade e Conservação de Bivalves em Portugal, usando informação ecogeográfica, genética e fisiológica, uma vez que havia um quase total desconhecimento sobre estes animais. Passados quase dez anos, expandimos o nosso conhecimento para um nível global, descobrimos e descrevemos espécies novas, as suas distribuições, histórias evolutivas, requisitos ecológicos, e agora um genoma!”