A aventura de Gabriela Sousa começou na manhã do dia 6 de abril, quando recebeu uma chamada telefónica da enfermeira-chefe do Hospital de Campanha do Porto, instalado no Super Bock Arena Pavilhão Rosa Mota, a perguntar se ainda estava disponível para ajudar, dado que se tinha voluntariado dias antes. A estudante do 4.º ano do Mestrado Integrado em Medicina do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) disse logo que sim. “A partir daí, acordei todos os dias com um nervoso miudinho à espera de receber novas informações”, confessa.

A resposta à ansiedade chegou apenas três dias depois, quando, no dia 9 de abril à noite, recebeu um novo contacto, desta vez por e-mail. “É um misto de emoções que nos assalta nestas circunstâncias”, conta Gabriela. A mensagem convocava-a para estar presente, no dia seguinte, numa sessão de formação sobre equipamento de proteção individual. “A partir desse momento, tudo começou a ficar real, e começou-se a abater sobre mim a responsabilidade daquilo a que me tinha proposto”, assegura.

No Hospital de Campanha do Porto, que começou a receber doentes infetados com covid-19 desde o dia 15 de abril, todos os prestadores de cuidados de saúde são voluntários. Incansáveis, fazem turnos de 12 horas, para assistirem os doentes que chegam de vários hospitais da área metropolitana do Porto. Na maior parte dos casos, são doentes assintomáticos que não têm condições para se isolarem em casa ou que necessitam de cuidados de compensação de doenças que já tinham.

“Tem sido uma experiência surreal, que pensava nunca vir a ter”…

… reconhece a aprendiz de medicina. E ainda que não possa prestar cuidados médicos, por ainda se encontrar a completar o 4.º ano do  acurso, Gabriela não poupa esforços no apoio a tarefas como a entrega de medicação, a mobilização de doentes, a admissão de novos infetados, ou a monotorização dos que já se encontram admitidos. “Nos últimos dias tenho aprendido mais do que esperava, tenho vivenciado um espírito de equipa e de união enorme, tenho trabalhado lado a lado com antigos professores e médicos e enfermeiros que admiro. É difícil descrever a sensação de estar num sítio destes, na linha da frente”.

As medidas de segurança são apertadas, e às vezes chegam mesmo a “parecer sufocantes”, desabafa Gabriela. “Todos os conceitos de controlo de infeção em pura aplicação. Todos os que aqui estão, certamente, irão sair desta experiência com mais conhecimento sobre controlo de infeção e sobre como lidar com situações de stress”.

“O ambiente vivido é um misto de emoções”

Ao fim de algumas horas, com poucas paragens, o cansaço começa a vencer. “Os equipamentos são quentes, as viseiras fazem pressão, os respiradores magoam a cara, o desconforto começa a ser muito grande”, descreve a voluntária. “E ao fim de alguns dias já se acorda cansado, as pernas já pesam no final dos turnos”. Mas a vontade de ajudar supera o cansaço, e todos os dias, garante, “acorda-se com a mesma vontade incansável de voltar ao hospital e de trabalhar em prol do bem comum”.

“O ambiente vivido é um misto de emoções: cansaço, ansiedade, alegria, entreajuda, mutualismo, união, amizade”, que enriquecem a experiência de Gabriela e de outros voluntários que, como ela, passaram “a viver em prol do bem comum, a colocar de lado algumas das nossas exigências pessoais”. Em resumo, “passamos a olhar mais para o bem do outro e a ser felizes ao fazê-lo”.

Conciliar o trabalho com a faculdade

A par dos turnos de 12 horas, Gabriela tem aulas e tem de estudar. Conciliar tudo não é tarefa fácil, e requer o apoio e compreensão dos que a acompanham neste percurso, especialmente dos professores e dos colegas de turma. “O apoio deles tem sido absolutamente fundamental, e a eles devo o meu mais sincero, honesto e profundo obrigada”, agradece.

A organização diária torna-se particularmente complicada com as mudanças constantes dos turnos no hospital, que “fazem com que seja necessária uma flexibilidade mental muito grande”. Para alguém meticuloso como Gabriela, que “concebia os seus dias ao mais ínfimo pormenor da hora, e que os cumpria rigorosamente”, habituada a seguir “regras e rotinas”, o novo contexto de imprevisibilidade é desafiante e exige que os dias tenham de ser construídos aos poucos.

“Nem eu sabia que era capaz de não planear. Achava eu que seria sempre uma pessoa de rotina e de plano. Mal sabia eu que seria capaz de muito mais e que, por paixão pelo que faço e farei para o resto da minha vida, seria capaz de colocar de lado esse traço de personalidade, chegando mesmo à conclusão de que se calhar nem traço de personalidade era, mas sim um hábito enraizado”, confessa a estudante de medicina.

Na sua nova rotina, é apenas certo que se levanta, vai para o hospital e regressa a casa no final do turno. Se tem uma pausa, por mais pequena que seja, aproveita para estudar. Ao fim do dia, se lhe sobrar algum tempo, faz algum exercício, que “ajuda a manter a mente sã”.