A sustentabilidade tem vindo a consolidar-se como uma das grandes prioridades do ensino superior e a FEP tem se destacado nesta área, promovendo uma reflexão contínua sobre o seu papel na sociedade e no ambiente. O Professor Manuel Castelo Branco, que foi o primeiro presidente do Comité de Sustentabilidade da FEP, tem sido uma das figuras-chave nesse processo. Ao longo da sua carreira, tem contribuído para integrar as questões da sustentabilidade nas práticas educativas, na investigação e na gestão da Faculdade, trabalhando de perto com docentes, estudantes e parceiros externos.
Nesta conversa, o Professor reflete sobre o impacto do Comité de Sustentabilidade na FEP, a importância da certificação em Scope 3, que avalia as emissões indiretas da Faculdade, e a criação de novas unidades curriculares que abordam temas como a transição climática nas organizações e a sustentabilidade corporativa.
Partilha também a sua visão sobre a responsabilidade social empresarial e o papel das empresas na promoção de uma economia mais ética e transparente, abordando também o impacto da sua investigação na forma como as instituições podem contribuir para um desenvolvimento verdadeiramente sustentável.
O Professor foi o primeiro presidente do Comité de Sustentabilidade da FEP, atualmente presidido pela Professora Cláudia Ribeiro. Que papel considera que este órgão, de natureza consultiva, tem tido na promoção da sustentabilidade e da responsabilidade social universitária na Faculdade?
Tem sido muito importante, principalmente desde que a Professora Cláudia Ribeiro assumiu a liderança do Comité. Com o auxílio de diversos funcionários (docentes e não docentes), estudantes e do Dr. Eduardo Moura, da EDP, a Professora Cláudia, com colaboração inestimável da Dr.ª Ana Matos, tem conseguido fazer com que a FEP avance a passos largos no sentido de se transformar numa escola em que as preocupações relacionadas com a sustentabilidade se encontram de facto integradas em tudo o que se faz (aprendizagem e ensino; investigação; governo e operações; liderança social).
A FEP obteve recentemente a certificação em Scope 3, um reconhecimento particularmente exigente que abrange emissões indiretas como as deslocações diárias ou o consumo de bens e serviços. Qual o significado deste passo no percurso da FEP rumo à neutralidade carbónica?
Trata-se de um passo fundamental, desde logo porque significa que a FEP já consegue mensurar, de alguma forma, este tipo de impacto. É importante referir que se trata de algo que é extremamente difícil de mensurar com fiabilidade. Esta mensuração é indispensável para que se possa pensar em gerir as operações no sentido da FEP contribuir para o desafio da redução da emissão de gases com efeito estufa. Prefiro não usar a expressão “neutralidade carbónica”, porque me parece excessiva relativamente ao se pretende de facto fazer e ao que se está a conseguir fazer (não na FEP em particular, mas a nível mundial).
Em breve serão lançadas novas disciplinas na área da sustentabilidade, entre elas Transição e Ação Climática nas Organizações e Corporate Sustainability, esta última lecionada por si. O que gostaria de destacar sobre estas novas ofertas e o que espera que os estudantes retirem desta formação?
São unidades curriculares importantes para que os estudantes conheçam muito do que está a ser feito a vários níveis, desde o nível das políticas públicas ao nível das práticas empresariais, no sentido da prossecução do desenvolvimento sustentável. Embora se esteja a verificar atualmente um grande retrocesso nos EUA, o mesmo não parece estar a suceder na União Europeia, onde, por exemplo, certas empresas são já obrigadas a divulgar informação sobre a sua contribuição (ou falta dela) para a prossecução do desenvolvimento sustentável.
Penso que, relativamente a ambas as unidades curriculares, uma das preocupações fundamentais será estimular os estudantes a preocuparem-se com algo mais do que os mercados, nomeadamente através da compreensão de valores sociais e humanos como, por exemplo, os relacionados com a ligação aos outros e à natureza e a necessidade de encontrar sentido nas suas atividades. Repetindo afirmações já feitas por muitos, trata-se de reconhecer que vivemos todos num único planeta com recursos limitados e que o que acontece na economia se reflete no ambiente e na vida de todos no planeta. Outra preocupação será a de dar a conhecer um conjunto de instrumentos associados à contribuição para o desenvolvimento sustentável que são utilizados pelas empresas (por exemplo, as Normas Europeias de Relato de Sustentabilidade, o Pacto Global da Organização das Nações Unidas, as obrigações verdes, sociais e de sustentabilidade). Uma vez que são eles que irão ser responsáveis pelas formas como a problemática do desenvolvimento sustentável será tratada no futuro, parece-me fundamental que os estudantes sejam confrontados com ela e com a forma como está a ser abordada atualmente para que possamos evitar que num futuro próximo o comportamento de todos os tipos de organizações, em particular de governos e empresas, face à prossecução de tal desenvolvimento deixe de poder ser caracterizado como titubeante.
A FEP tem vindo a reforçar a sua aposta na formação para os desafios do desenvolvimento sustentável. De que forma considera que a Faculdade está a preparar os seus estudantes para um mundo em transição?
O reforço da aposta na formação para os desafios do desenvolvimento sustentável parece-me fundamental para que a FEP se possa afirmar como uma escola com um projeto educativo que faça sentido no mundo de hoje. Apesar (ou por causa) de um conjunto de retrocessos sérios que estão a ocorrer, como sejam os conflitos na Ucrânia e Gaza (com os atropelos gravíssimos aos direitos humanos que representam) ou os retrocessos ocorridos nos EUA quanto aos mais variados aspetos associados ao desenvolvimento sustentável (desde os associados às políticas de diversidade e inclusão aos associados às políticas de alterações climáticas), parece-me que qualquer escola que pretenda ser uma referência tem de apostar em tal reforço. A FEP sempre se preocupou com preparar os seus estudantes para um mundo em transição, como evidencia a existência do Mestrado em Economia e Gestão do Ambiente desde 2008. Na licenciatura em Economia, unidades curriculares como Economia do Ambiente ou Economia Social são oferecidas desde há muito tempo com esse objetivo. Na licenciatura em Gestão, a unidade curricular Ética e Responsabilidade Social tem também uma longa tradição. As novas unidades curriculares na área de sustentabilidade correspondem a um passo adicional. Outros virão.
O Mestrado em Economia e Gestão do Ambiente, que dirige, foi pioneiro nesta área. Como tem evoluído este programa ao longo do tempo e que tipo de impacto tem gerado nos seus estudantes e na sociedade?
Penso que MEGA tem evoluído de forma bastante satisfatória e seguramente continuará a fazê-lo. Trata-se de um mestrado com grande visibilidade, por estar na 19ª posição do ranking Eduniversal Best Masters Ranking 2024 dos melhores programas em todo o mundo na área de Desenvolvimento Sustentável e Gestão Ambiental, sendo atualmente o segundo mestrado português mais bem posicionado nesse ranking. Tem ocorrido uma combinação de estudantes com longa experiência e excelente currículo na área com estudantes mais jovens que procuram dar continuidade ao conhecimento adquirido na licenciatura. Esta combinação de perfis é desafiante, mas proporciona experiências de aprendizagem mais amplas e diversificadas. Significa também que se tem conseguido ter um impacto positivo em pessoas que procuram melhorar os seus conhecimentos e o seu desempenho profissional na área ou, em alguns casos, mudar de área de atuação profissional, e em pessoas que desejam iniciar a sua atividade na área.
Tem também ocorrido uma combinação de estudantes com formação base em economia e gestão com estudantes com formação base noutras áreas, como as ciências ambientais, a geografia ou as relações internacionais. Novamente, trata-se de uma combinação de perfis que é desafiante, mas que proporciona experiências de aprendizagem mais amplas e diversificadas e estimula a interdisciplinaridade nas abordagens aos assuntos objeto de estudo nas diferentes unidades curriculares. Tem sido possível ajudar pessoas com formações-base adequadas para lidar com desafios específicos da sustentabilidade (alterações climáticas, perdas da biodiversidade, acidificação dos oceanos) a obter os indispensáveis conhecimentos nas áreas da economia e gestão para que se possam inserir em equipas de trabalho necessariamente inter e multidisciplinares. Este parece-me ser um aspeto fundamental do que fazemos.
Um outro aspeto que me parece dever ser salientado é o de termos sido um mestrado bastante internacionalizado desde o primeiro ano de funcionamento. A procura do mestrado por parte de estudantes brasileiros tem sido bastante elevada ao longo dos anos. Isto tem possibilitado a ocorrência de colaborações bastante profícuas com colegas brasileiros, nomeadamente ao nível da orientação de trabalhos de mestrado. O mestrado também tem sido procurado por estudantes de países europeus (Alemanha, Bélgica, China, Itália e Roménia são alguns dos países dos quais tais estudantes são oriundos), de países africanos (nomeadamente, de Angola, de Cabo-Verde e da Guiné-Bissau) e também por estudantes de outros países da América Latina, como a Colômbia e o Perú. Como muitos destes estudantes voltaram para os seus países, podemos dizer que o mestrado tem tido um impacto internacional muito interessante.
A sua investigação foca-se em temas como responsabilidade social empresarial, relato não financeiro, corrupção e comportamento tributário. Como é que estas temáticas se cruzam com os desafios da sustentabilidade e da promoção de uma economia mais ética e transparente?
A responsabilidade social das empresas (RSE) é, pelo menos desde o início do presente século, um tema em foco na União Europeia. A Comissão Europeia associou-a diretamente ao “contributo das empresas para o desenvolvimento sustentável” num documento de 2002. Num documento de 2011, sobre “Responsabilidade social das empresas: uma nova estratégia da UE para o período de 2011-2014”, a Comissão Europeia define a RSE como “responsabilidade das empresas pelo seu impacto na sociedade”. Prefiro a designação “RSE” à de “sustentabilidade empresarial”, uma vez que me parece que, nesta perspetiva de responsabilidade por impactos (ambientais e sociais, sendo que os impactos económicos constituem, na verdade, impactos sociais) na sociedade, os termos “sustentável” ou “sustentabilidade” dificilmente podem ser aplicados a uma organização individual. Um tipo de relato não financeiro é o chamado relato de sustentabilidade (sendo outros o relato de risco ou o relato de capital intelectual). Não obstante, na União Europeia, até ser publicada a chamado “Diretiva do Relato de Sustentabilidade Empresarial”, o termo “relato não financeiro” era usado com referência ao relato de sustentabilidade. A responsabilidade de divulgar informação relacionada com a RSE é, para mim, uma responsabilidade social. No documento que referi acima, “a promoção da responsabilidade social e ambiental através da cadeia de abastecimento e a divulgação de informações não financeiras são consideradas questões transversais importantes”. Concordo com esta perspetiva.
Aspetos de natureza “económica”, como a partilha do valor gerado, a combate à corrupção e o comportamento tributário são, para mim, aspetos cruciais da RSE. Na verdade, embora as normas europeias de relato de sustentabilidade ignorem em grande medida estes aspetos de natureza económica (apenas dando relevo ao combate à corrupção), a todos estes aspetos (e a outros da mesma natureza) é atribuída grande importância pela Global Reporting Initiative, nas suas normas para a elaboração de relatórios de sustentabilidade. Considero esta última abordagem preferível e acho indispensável lidar com problemas como os relativos aos diversos tipos de desigualdade, nomeadamente através do combate à corrupção, do comportamento tributário responsável e do lobbying responsável, para que se possa lidar adequadamente com os outros problemas, designadamente os de natureza ambiental. Considero a preservação dos chamados comuns imateriais (incluindo o processo democrático e a conexão social) tão importante como a dos ambientais (atmosfera, oceanos, etc.). Práticas empresariais como a corrupção, a evasão e elisão fiscais ou lobbying a favor de legislação que é benéfica para as empresas, mas prejudicial para a sociedade, não só podem ter uma influência indireta na desigualdade, como seguramente contribuem para uma degradação dos comuns imateriais e dificultam ou mesmo impossibilitam que se lide adequadamente com os problemas relativos à degradação ambiental.
Ao longo da sua carreira, tem publicado em revistas científicas de referência e, mais recentemente, lançou o livro Corporate Social Responsibility, the Fight Against Corruption and Tax Behaviour. De que forma a investigação tem moldado a sua visão sobre o papel das empresas e instituições na transformação social?
Trata-se de uma questão a que tenho alguma dificuldade em responder. Por um lado, tem-se verificado um grande envolvimento por parte das empresas na prossecução do desenvolvimento sustentável. Por outro lado, também se verifica o oposto. As empresas, principalmente as de grande dimensão, desempenham um papel de obstrução à transformação social no sentido da prossecução do desenvolvimento sustentável. Por exemplo, durante a recente pandemia de Covid-19 multiplicaram-se as notícias sobre o aproveitamento da pandemia por parte de empresas multinacionais e associações empresariais para pressionar os decisores públicos no sentido de tomarem decisões que consideravam serem-lhes favoráveis. Um relatório da organização Friends of the Earth, com o título “Cashing in on COVID” (que se pode traduzir de forma grosseira por “Lucrando com o COVID”), no qual foi analisado o caso das empresas de petróleo e gás baseadas nos EUA e das suas associações empresariais durante o primeiro trimestre de 2020, dá conta do lobbying exercido e dos grandes benefícios obtidos por tais empresas dos apoios resultantes das políticas de resposta à pandemia do Covid-19, nomeadamente os relativos a isenções fiscais e empréstimos de estímulo. Também há notícias de as empresas multinacionais e suas associações empresariais terem utilizado o lobbying para procurar contrariar ou atrasar as políticas de alterações climáticas. De tal forma que a importante organização Carbon Market Watch sentiu necessidade de publicar um documento em que denuncia aquilo que designa de “lobbying climático da indústria”, com o título “Never Wasting a Crisis” (que pode ser traduzido por “nunca desperdiçar uma crise”). Neste documento conclui-se que foram observadas várias tentativas no sentido de usar a pandemia Covid-19 “como um pretexto para enfraquecer a legislação climática nacional, Europeia e internacional e a implementação do Green Deal da União Europeia”. Outro exemplo ainda é o financiamento das chamadas “climate denial organizations” (organizações cujo propósito é a divulgação de visões que negam a existência de alterações climáticas antropogénicas ou, aceitando a sua existência, as consideram residuais) por aquelas empresas. Existe pelo menos um artigo científico sobre o financiamento por parte da Exxon Mobil de sessenta e nove dessas organizações durante o período 1998-2014. Saliento que muitos destes aspetos estão relacionados com a corrupção e fenómenos conexos e com o comportamento tributário. Não posso deixar de mencionar na resposta a esta questão o que se tem passado nos EUA com a segunda presidência de Donald Trump. Inúmeras empresas estão a alterar o seu compromisso com a RSE, como: a Meta, que, entre outras coisas, alterou as suas políticas de moderação de conteúdos; a BlackRock e a Goldman Sachs, entre várias outras empresas, que abandonaram recentemente a Net Zero Asset Managers Initiative. Muitos outros casos podiam ser referidos. Tudo isto faz-me ser muito cético quanto ao verdadeiro papel das empresas na promoção da transformação social promotora do desenvolvimento sustentável.