Depois de décadas refém de resultados contraditórios, a árvore filogenética das aves acaba finalmente de ser desvendada, com a colaboração do investigador do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (CIIMAR) e professor da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP), Agostinho Antunes.
Muitos estudos anteriores tinham tentado construir a árvore filogenética das aves, usando pequenos conjuntos de dados de diferentes regiões genómicas. Contudo, estes trabalhos produziam frequentemente resultados contraditórios.
O estudo intitulado “Complexity of avian evolution revealed by family-level genomes”, publicado na prestigiada revista Nature e que envolveu o investigador do CIIMAR e professor da FCUP, permitiu usar, pela primeira vez, dados completos a uma escala genómica para construir a árvore genealógica para espécies de aves. Uma reconstrução intrincada que ilustra 93 milhões de anos de relações evolutivas entre 363 espécies de aves, representando 92% de todas as famílias destes animais.
Segundo Agostinho Antunes, “esta nova árvore genealógica será uma base sólida para mapear a história evolutiva de todas as espécies de aves, com implicações importantes para a investigação ornitológica, estudos de biodiversidade e conservação.”
Este conjunto completo de dados genómicos foi produzido pelo consórcio B10K (Bird 10 000 Genomes Project) após a sequenciação de 48 genomas de aves publicados em 2014 na revista Science, que também contou com a colaboração de investigador do CIIMAR e professor da FCUP. O trabalho publicado agora efetua um grande avanço aos trabalhos anteriores.
Mais dados e mais completos
Ao empregar dados completos do genoma de 363 espécies de aves, o estudo agora publicado envolveu o maior conjunto de dados já utilizado para análises filogenéticas de aves. Para isso, a equipa do B10K construiu um novo pipeline para extrair mais de 150 mil regiões espalhadas pelo genoma. A caracterização das relações filogenéticas em todo o genoma permitiu identificar padrões associados ao contexto genómico e às características da sequência.
Agostinho Antunes clarifica de que forma isso distingue este estudo das tentativas anteriores: “As várias partes do genoma, por exemplo, cromossomas individuais ou genes codificadores de proteínas, sustentam, muitas vezes, árvores muito diferentes. Isso possivelmente explica o motivo pelo qual os estudos anteriores, que analisaram apenas certas porções genómicas, estavam em conflito.”
A equipa de trabalho descobriu que, para a maioria dos agrupamentos, é possível chegar a um consenso sobre os seus relacionamentos, quando uma quantidade suficiente de dados é usada. Mas as posições filogenéticas de alguns grupos de aves, como é o caso das corujas ou dos falcões, permanecem intrigantes, mesmo com dados em escala completa do genoma. É nestes casos, em que reunir grandes quantidades de dados de alta qualidade é fundamental para se produzir uma árvore filogenética robusta.
Esta nova árvore genealógica resolve alguns destes debates de longa data sobre as relações entre as espécies de aves e estabelece uma base sólida para o estudo da evolução das aves e do desenvolvimento de características, desvendando novos caminhos naquela que ainda é a longa jornada para compreender completamente os mistérios da evolução das aves.
Uma escala temporal precisa
Apesar dos esforços anteriores para compreender os impactos do evento Cretáceo-Paleógeno, utilizando dados morfológicos e moleculares, as relações entre as linhagens neoaviárias permaneceram controversas. Os métodos aplicados neste trabalho basearam-se na comparação de genomas de espécies vivas que, no entanto, permitem obter informação de eventos que aconteceram há muito tempo atrás.
Através de métodos computacionais de ponta e recursos de supercomputação de última geração, o estudo permitiu propor uma escala temporal mais precisa para a diversificação das aves modernas, sugerindo que se deu uma rápida radiação durante ou perto da extinção em massa na fronteira Cretáceo-Paleógeno (o evento associado à extinção dos dinossauros) e após o Paleógeno-Neógeno.
“Aproximadamente 95% de todas as espécies de aves atuais (Neoaves), emergiu desta radiação!” reforça o investigador do CIIMAR e professor na FCUP. A nova árvore desafia a organização dos Neoaves ao classificar este grande grupo em quatro clados principais: Mirandornithes, Columbaves, Elementaves e Telluraves.
Os investigadores descobriram que estas radiações coincidiam com mudanças genéticas e morfológicas notáveis dentro das aves: maiores taxas de mutação, tamanhos corporais menores, cérebros maiores e tamanhos populacionais efetivos maiores.
“As aves são a única linhagem de dinossauros que sobreviveu até hoje. Há cerca de 66 milhões de anos, na fronteira do Cretáceo-Paleógeno, um evento de extinção em massa destruiu todos os dinossauros não-aviários, proporcionando uma oportunidade para as aves se diversificarem rapidamente e ocuparem uma ampla gama de nichos ecológicos. As neoaves, um grupo diversificado que compreende aproximadamente 95% de todas as espécies de aves atuais, emergiu desta radiação. Dos imponentes condores dos Andes aos diminutos colibris que voam pelas florestas tropicais, as neoaves abrangem uma impressionante diversidade de formas e funções.”, conta Agostinho Antunes.
As primeiras aves
Usando métodos computacionais avançados, os investigadores também conseguiram esclarecer algo invulgar que tinha sido descoberto em 2014, mas que nunca tinha sido devidamente compreendido: uma secção específica de um cromossoma no genoma das aves permaneceu inalterada durante milhões de anos, anulando os padrões esperados de recombinação genética.
“Esta anomalia foi baseada na análise dos genomas de apenas 48 espécies de aves e levou inicialmente os investigadores a agrupar incorretamente os flamingos e as pombas como grupos evolutivos próximos, pois pareciam intimamente relacionados com base nesta secção inalterada do DNA. Ao repetir a análise usando os genomas de 363 espécies do atual estudo, surgiu uma árvore genealógica mais precisa que afastou os pombos dos flamingos. Essa deteção permitiu identificar atualmente um evento preciso que terá acontecido há mais de 60 milhões de anos, o que é extraordinário” explica o investigador do CIIMAR.
Este avanço é detalhado num artigo complementar publicado no Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) . Neste trabalho, os investigadores examinaram de perto um dos ramos da nova árvore genealógica e descobriram que os flamingos e as pombas estão mais distantemente relacionados do que as análises anteriores do genoma tinham mostrado.
Os resultados destes trabalhos lançam assim uma nova luz sobre os mecanismos adaptativos que impulsionaram a diversificação aviária no rescaldo do evento de extinção em massa Cretáceo-Paleógeno.
Um voo de longa duração
Avançando com a investigação, a equipa promete continuar o esforço para desvendar por completo a evolução das aves. O trabalho futuro pretende conciliar a sequenciação dos genomas de outras espécies de aves para expandir a árvore genealógica a milhares de géneros de aves e optimizar algoritmos e recursos computacionais para acomodar conjuntos de dados ainda maiores, a fim de garantir que as análises em estudos futuros sejam conduzidas com alta velocidade e precisão.
No entanto, já é possível dizer que estes resultados alteram imensuravelmente as visões tradicionais sobre a história evolutiva das aves. Esta nova árvore genealógica será uma base sólida para mapear a história evolutiva de todas as espécies de aves, com implicações importantes para a investigação ornitológica, estudos de biodiversidade e conservação.
Como destaca Agostinho Antunes, os métodos computacionais desenvolvidos irão certamente ajudar a clarificar a árvore genealógica e a história evolutiva de outros seres vivos: “O impacto deste trabalho vai muito além do estudo da história evolutiva das aves. Os métodos computacionais pioneiros desenvolvidos irão certamente tornar-se ferramentas padrão para reconstruir árvores evolutivas de uma grande variedade de outros animais.”
Sobre o projeto B10K
O Projeto B10K (Bird 10 000 Genomes) é uma iniciativa que visa mapear os genomas de todas as aproximadamente 10.500 espécies de aves atualmente existentes na Terra.
Este ambicioso projeto procura construir uma árvore da vida das aves abrangente a partir do conhecimento completo dos seus genomas, descodificando as ligações entre a variação genética e as diferenças de características fenotípicas, desvendando a evolução molecular, a biogeografia e as inter-relações da biodiversidade, avaliando o impacto das mudanças ambientais e humanas, atividades sobre evolução das espécies e biodiversidade, e revelando a história populacional de todo o grupo de aves.
Os trabalhos agora publicados do B10K foram lideradas por Josefin Stiller (University of Copenhagen, Denmark), Siavash Mirarab (University of California San Diego, USA) e Guojie Zhang (Zhejiang University, China), e incluíram vários outros investigadores internacionais entre os quais Agostinho Antunes.