Uma equipa de investigadores portugueses, liderada por Mónica Sousa, do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto (i3S), publicou na revista Developmental Cell um artigo em que revela os mecanismos moleculares que permitem ao ratinho espinhoso africano (Acomys cahirinus) regenerar a espinhal medula após lesão. A descoberta vem revolucionar um antigo paradigma, pois até hoje não se conhecia nenhum mamífero capaz de regenerar o Sistema Nervoso Central (SNC) e recuperar mobilidade após lesão da medula. Quebra-se, assim, uma enorme barreira no desenvolvimento de terapias para lesões imobilizantes.

A regeneração do sistema nervoso central de mamíferos adultos é virtualmente impossível pela incapacidade dos neurónios afetados reconstituírem os axónios que são afetados quando ocorre uma lesão, o que resulta numa paralisia dos membros. A espinhal medula contém longas extensões – os axónios – das células nervosas, chamadas neurónios. Esses axónios são responsáveis pela transmissão de informação a longa distância e permitem que percebamos a informação que recebemos de todas as partes do corpo, como a sensação de dor, calor, ou até outras informações que não tomamos consciência. Por outro lado, é pelos axónios que o nosso cérebro envia informação para que o nosso corpo execute uma ação, como contrair um músculo ou mover um membro. Quando essa comunicação é cortada, as ordens não são recebidas.

Como explica Mónica Sousa, coordenadora do estudo, “as lesões da espinhal medula afetam os axónios que fazem circular informação do corpo para o sistema nervoso central, e vice-versa, isolando os órgãos da central de processamento de informação”. E adianta: “Conhecem-se seres com capacidade regenerativa de membros inteiros, como o caso de alguns anfíbios, mas pensava-se que, em geral, todos os mamíferos adultos perdiam por completo a capacidade regenerativa do SNC”. Uma exceção a essa regra é o ratinho espinhoso, que já foi demonstrado anteriormente ser capaz de regenerar feridas na pele, orelhas e tecido muscular.

Segundo Joana Nogueira-Rodrigues, primeira autora deste trabalho, a equipa demonstrou “que, notavelmente, a capacidade regenerativa do ratinho espinhoso permite ao animal restaurar a função locomotora após lesões graves na medula espinhal».  Quando observado em detalhe, os investigadores verificaram que ocorria, no local de lesão na medula do Acomys cahirinus, uma regeneração robusta de axónios, permitindo a formação de sinapses e a propagação de sinal eletrofisiológico. Algo único entre os mamíferos.

Mónica Sousa (coordenadora do estudo) e Joana Rodrigues (primeira autora do trabalho agora publicado). (Foto: i3S)

A mesma ideia é reforçada por Gustavo Tiscornia e Inês Araújo, investigadores da Universidade do Algarve (CCMAR e ABC-RI) envolvidos neste trabalho, ao afirmarem que “o Acomys é um mamífero extraordinário, pois a sua capacidade regenerativa também se verifica noutros sistemas e órgãos, como pele, orelhas e músculos”.

“Este trabalho”, diz Mónica Sousa, “vai muito além da demonstração dessa capacidade regenerativa em Acomys, pois mostramos quais os mecanismos moleculares que estão na base deste fenómeno e isso só foi possível com a colaboração da Universidade do Algarve e de várias equipas do i3S e com o apoio financeiro inicial dado pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e pela Wings for Life”.

De facto, segundo os investigadores, existe uma via biossintética que é ativada neste animal que permite a formação de umas proteínas com uma assinatura de açúcares específica que parecem ser a chave para a capacidade pro-regenerativa. Notavelmente, em contraste com outros mamíferos, o Acomys cahirinus desenvolve um tecido pró-regenerativo sem cicatrizes no local da lesão, proporcionando uma continuidade estrutural única da geometria inicial da medula espinhal. Normalmente, após uma lesão, os mamíferos ficam com uma cicatriz que os axónios são incapazes de ultrapassar, mas os Acomys cahirinus desenvolvem um tecido que é mais transponível e ativam a produção de uma enzima – a β3gnt7 – que funciona como um potenciador do crescimento de axónios.

Para Mónica Sousa, estes novos achados no processo regenerativo do Acomys cahirinus, representam um momento de mudança para a investigação biomédica na área de regeneração do SNC. “Até hoje tinham-se feito avanços na compreensão da função de algumas proteínas que auxiliavam no processo regenerativo. Mas o Acomys permitiu-nos perceber que é preciso olhar para a assinatura dos açucares presentes e para a sua biossíntese, o que irá alavancar o que se faz nesta área”.