Em terras de Nove Meses de Inverno e Três de Inferno o ventre do porco abocanha a faca e a fé faz erguer corpos na cruz. Do inverno ao inferno, o voo da câmara de João Pedro Marnoto fixou momentos de intimidade com os animais, a terra e as pessoas que a habitam. Acompanhamos a força animal que lavra o campo, o erguer da mão que colhe a uva madura, o fumegar das batatas servidas com carne assada e o lume que aquece as casas e faz crepitar tradições. A exposição, com mais de 50 fotografias, sai, pela primeira vez, do território do Douro e Trás-os-Montes e chega, finalmente, ao Porto. Inaugura nas Galerias da Casa Comum, ao edifício da Reitoria da Universidade do Porto, no próximo dia 12 de setembro às 18h00.

Começou em 2006 o projeto que só viria a terminar em finais de 2017. Não sendo o resultado de uma decisão planeada, João Pedro Marnoto viveu e trabalhou em terras do Douro e Trás-os-Montes durante mais de dez anos. Um período que coincidiu “com inquietações às quais procurava dar resposta”. Ou talvez fosse “o subconsciente a impor-me o caminho. Quem sabe!” Sabemos que foi tempo fértil para o cultivo da introspeção que o levou “a questionar certezas cada vez mais acomodadas na planura do mundo”. E assim a cidade foi ficando “para lá do horizonte, e de mim”.

Este foi também o arco temporal que lhe permitiu construir, no terreno, uma relação de confiança. “De outra forma não teria sido possível fazer o trabalho que fiz”. E a camara é “o que permite ir mais fundo”. Até porque, acrescenta, “as pessoas têm a necessidade de partilhar e de serem ouvidas”.

A câmara de João Pedro Marnoto era a “enxada”, com a qual percorria o território “numa labuta que me deixava exausto e que não tinha horas marcadas”. Até porque, diz, não era “o tipo de realizador subsidiado que passava o dia com o lavrador na sua labuta dura e depois ia ao fim do dia descansar para o hotel”.

As imagens transmitem a vida. E a morte consequentemente

Para o fotógrafo, as imagens representam “o contraste escatológico entre aqueles que se relacionam com o meio envolvente de forma tanto crua como real, tanto no lado material quanto emocional/espiritual, e a cada vez maior maioria (de onde eu também tenho origens) que bem se pode abstrair e imolar na sua aparente, ilusória e vazia redoma de conforto”.

Nesta pulsante aventura entre contrastes, o lado inocente e pueril dos dias convive com a violência da faca. Com a inevitabilidade da morte. A vida (da qual a morte faz parte), torna-se mais evidente. Talvez seja por isso, arrisca dizer João Pedro Marnoto, “que o mundo rural tanto nos apavora como nos fascina”. As imagens transmitem “mesmo isso: a vida. E a morte consequentemente”.

O Filme

“Toda a gente foge dos trabalhos mais duros. Toda a gente quer os computadores”, diz-nos o agricultor entre as pazadas de estrume que retira do camião e lança para a terra, nas horas incertas da neblina da alvorada. Enquanto a neve martela a relva, lá fora, é com o lume a arder na lareira que alguém lança a pergunta que fica a crepitar em nós: “E quem fez as batatas para comer, e o trigo e o vinho para beber? João Pedro Marnoto confessa que começou por fazer fotografia, mas logo depois acabou por lhe associar o filme. “Não conseguia ficar indiferente tanto ao que via como ao que ouvia”.

Trabalho concluído, decidiu levar o filme às aldeias, em salas de cinema improvisadas, como “forma de retribuir e partilhar o que tinha feito com quem tinha feito”. O feedback? Os retratados sentiam-se “respeitados”.

O que se mostrava “não era uma imagem bonitinha e paternalistas de quem olha de fora (para um Zoo exótico), mas antes real e sincera, mesmo que nem sempre bonita, e até mesmo feia, de alguém que os entendia e que mesmo não sendo de lá, sentia o território como quem sente o seu lar. Lá está, o tempo é sempre o maior aliado”.

 

O frágil equilíbrio da condição humana

Partindo do espaço rural, Nove Meses de Inverno e Três de Inferno acompanhou uma realidade em transformação: “enquanto o alcatrão nas estradas e as barragens nos rios ganham terreno sobre a natureza, o homem perdura numa coexistência árdua com o meio, honrando um passado vincado pelo esforço e rigor tanto físico quanto espiritual, em contraste com um presente onde parece dominar uma cultura tanto de formatação como exaltação moral” diz-nos a sinopse. A condição humana num frágil equilíbrio entre três vértices: “a relação com a Terra, a Fé e o Progresso”.

A esta terra de contrastes o fotografo e realizador regressa “sempre como quem volta a casa”. A mudança, reconhece, “é uma inevitabilidade que vai avançando mesmo que nos doa fundo. O mundo rural não vai desparecer, mas vai transformar-se num equilíbrio delicado e nem sempre óbvio”. Como, de resto “sempre foi”.

E poderá pedir-se “ao aldeão que permaneça a viver na sua tradicionalidade folclórica, mas precária enquanto escrevo estas palavras na modernidade cómoda que todos desejamos? É o lado perverso da vida que, em boa medida, por mais que queiramos ocultar, não conseguimos jamais apagar. In the end fica a memória e os valores, que é realmente o que molda quem somos”.

O filme será exibido na Casa Comum no dia 17 de setembro, às 21h00, e será seguido de uma conversa com o realizador. Para dia 13 de outubro, pelas 18h00, está ainda agenda na agenda uma palestra, (organizada em conjunto com o NEFUP), onde será abordada a temática cultural das tradições do Alto Douro / Trás-os-Montes.

Com entrada livre, a exposição pode ser visitada de segunda a sexta-feira, das 10h00 às 13h00 e das 14h30 às 17h30, e ao sábado, das 15h00 às 18h00.

Nove Meses de Inverno e Três de Inferno encerra a 30 de outubro, com uma visita guiada, às 17h00, após a qual o filme será novamente exibido.

Sobre João Pedro Marnoto

Nasceu em 1975, na cidade do Porto, mas foi no Reino Unido que terminou a formação académica em fotografia. Recorrendo a ferramentas como a fotografia e o vídeo, o foco do seu trabalho incide, particularmente, na área do documentário.

Os projetos aos quais se dedica exploram questões relacionadas com identidade e refletem a condição humana, dentro de uma perspetiva ambiental e sociológica.