A incapacidade de biossintetizar e sinalizar a hormona da melatonina foi identificada em baleias e golfinhos, mas também em vacas-do-mar. (Fotos: DR)

Já se sabia que as baleias, os golfinhos e as vacas-do-mar possuem um sono assimétrico, que lhes permite descansar sem comprometer o estado de vigilância. Mas agora, uma equipa de investigadores do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental da Universidade do Porto (CIIMAR-UP) protagonizou um avanço significativo na compreensão deste comportamento. Utilizando análise genómica comparativa, a equipa portuguesa conseguiu deduzir que o comportamento vigilante e sono assimétrico característicos daquelas espécies se deve, em parte, à perda de genes envolvidos na produção e sinalização de uma hormona: a melatonina.

A melatonina é uma hormona de grande importância biológica, que participa, por exemplo, no controlo fisiológico de vários ritmos circadianos (diários) nos mamíferos, entre os quais os ciclos de acordar-dormir. É na glândula pineal, que se produz a melatonina num padrão diário muito específico e em níveis particularmente elevados durante a noite.

Mas apesar de este padrão ser observado genericamente nos mamíferos, destacam-se algumas exceções em mamíferos aquáticos como as baleias, golfinhos e também nas vacas-do-mar. Nestes seres vivos, este padrão apresenta notáveis diferenças que parecem estar associadas ao seu característico sono assimétrico em que os hemisférios cerebrais dormem de forma alternada, permitindo-lhes descansar sem comprometer o estado de vigilância, a manutenção da respiração ou mesmo da temperatura corporal, que normalmente diminui durante o sono. Curiosamente, a glândula pineal onde se produz a melatonina tem sido sugerida como vestigial ou mesmo ausente em várias espécies de cetáceos e em vacas-do-mar. Apesar disso, a melatonina foi já medida e encontrada no sangue de golfinhos. Perceber este intricado puzzle biológico foi o objetivo desta investigação do grupo de investigadores do CIIMAR-UP.

O estudo agora publicado na revista Genes investigou pela primeira vez a capacidade endógena dos cetáceos (baleias e golfinhos) e das vacas-do-mar em biossintetizar e sinalizar a hormona da melatonina. Através da análise comparativa do genoma e comparações bioinformáticas dos genes que participam na biossíntese de melatonina, a equipa conseguiu determinar que as enzimas produtoras de melatonina assim como os recetores capazes de traduzir os efeitos biológicos desta hormona, não estão funcionais naquelas espécies.

Isto é, foi possível perceber que existem “ruínas” destes genes no seu genoma. Aparentemente, os genes acumularam um número muito significativo de mutações e são por isso incapazes de dar origem a esta proteína. Estas evidências foram visíveis em baleias e golfinhos, mas também em vacas-do-mar. Curiosamente, e uma vez que as baleias e golfinhos não partilham um ancestral direto com as vacas-do-mar, é também possível inferir que este é um caso extraordinário de evolução convergente.

Um dos cientistas seniores neste trabalho, Filipe Castro do CIIMAR-UP, afirma que os resultados deste trabalho representam um “olhar único sobre a evolução do genoma deste grupo icónico de mamíferos aquáticos. Por outro lado, revelam que a perda de genes é um mecanismo instrumental no processo adaptativo a novos ecossistemas” e que “esta descoberta tem, por exemplo, o poder de nos elucidar como comportamentos complexos podem resultar de mudanças genéticas aparentemente simples”.

Também do CIIMAR-UP, Raquel Ruivo, que também liderou este trabalho, afirma: “este trabalho é um exemplo claro do poder das abordagens genómicas de baixo custo como ferramenta para estudar a biodiversidade”.

Resta então esclarecer a última peça do puzzle: se não produzem melatonina como foi medida esta hormona no sangue de golfinhos? Raquel Ruivo sugere “a alimentação é a fonte mais óbvia para os níveis encontrados. Não esquecer que a melatonina tem também outras ações importantes, por exemplo como antioxidante.” E termina “este foi realmente um trabalho muito entusiasmante! A combinação de tecnologias de última geração para estudar genomas com a pesquisa de trabalhos de anatomia comparada do início século XX, permitiu elucidar um interessante puzzle biológico”.