Desaparecida da Península Ibérica há mais de 20 mil anos, a lebre variável deixou a sua “marca” na lebre ibérica. (Foto: DR)

Um artigo que acaba de ser publicado pela prestigiada revista Genome Biology, da autoria dos investigadores do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto (CIBIO-InBIO) , Fernando Seixas e José Melo-Ferreira, desvenda como a lebre Ibérica incorporou partes do genoma de uma outra lebre entretanto desaparecida da Península Ibérica: a lebre variável.

A lebre Ibérica (Lepus granatensis) distribui-se atualmente por quase toda a Península Ibérica e é a única lebre presente em Portugal. Mas nem sempre foi assim… Há 20 mil anos, quando parte da Europa estava coberta de gelo, esta espécie vivia apenas na metade Sul da Península Ibérica, enquanto que a metade Norte era habitada pela lebre variável (L. timidus). Devido ao aquecimento natural do clima, a lebre Ibérica começou a invadir o território da lebre variável e, pelo caminho, apropriou-se de partes do genoma dessa espécie, que hoje está presente apenas em climas frios, nos Alpes e Norte da Eurásia.

No estudo agora revelado os investigadores analisaram os genomas completos de indivíduos das duas espécies para explicar por que razão o genoma da lebre Ibérica guarda a memória deste “fantasma” do passado. Quando “se torna possível o cruzamento entre indivíduos de duas espécies, ou seja, quando ocorre hibridação, isto pode levar à troca de informação genética entre elas” refere José Melo-Ferreira, coordenador do estudo, explicando que “foi precisamente este fenómeno, a que chamamos introgressão, que aconteceu com a lebre Ibérica”.

A Lebre Ibérica é a única lebre presente em Portugal. (Foto: DR)

Um exemplo destas porções “estrangeiras” é o ADN mitocondrial. No Norte da Península Ibérica, quase todas as lebres Ibéricas têm o ADN mitocondrial da lebre variável. Já no Sul, apenas se encontra o ADN mitocondrial original da lebre Ibérica. Perante este cenário, os autores do estudo quiseram descobrir como estes cruzamentos no passado afetaram todo o genoma da lebre Ibérica e se as trocas genéticas entre as duas espécies ocorreram somente por acaso ou se resultaram de selecção natural. Por outras palavras, terá sido a introgressão de porções do genoma da lebre variável vantajosa para a lebre Ibérica?

A partir da análise de vários genomas completos daquelas espécies de lebre ,os investigadores conseguiram perceber que, apesar de existirem inúmeras incompatibilidades que impediram a livre troca de genes entre as espécies, algumas porções do genoma nuclear vindas da lebre variável invadiram o genoma da lebre Ibérica. Mas, ao contrário do que se tinha visto no ADN mitocondrial, as porções “estrangeiras” são geralmente raras e ocorrem em lebres Ibéricas tanto no Norte como no Sul da Península Ibérica.

“Para compreender estas diferenças simulámos o processo de expansão da lebre Ibérica para Norte, invadindo uma região ocupada pela lebre variável, com cruzamentos entre as espécies”, explica Fernando Seixas, primeiro autor do artigo, realçando que “estas simulações resultaram em padrões muito semelhantes aos reais”. De acordo com o investigador, “os resultados indicam que, muito provavelmente, foi mesmo o acaso, durante a substituição das populações de uma espécie pelas da outra, o factor preponderante na maior parte das trocas de informação genética, tanto do ADN
mitocondrial como das porções do genoma nuclear”.

No entanto, a introgressão não é rara nem ter-se-á dado ao acaso em todos os genes. Entre os genes nucleares transferidos da lebre variável, alguns apresentam padrões excepcionais. “Por vezes a informação «estrangeira» ocorre com muito maior frequência do que o esperado, de acordo com as nossas simulações, sugerindo que a introgressão nestes genes foi guiada pela selecção natural”, revela José Melo-Ferreira.

“Analisando as funções destes genes, percebemos que estão relacionados com funções imunitárias e reprodutivas dos machos. Uma melhor capacidade reprodutiva dos machos, possivelmente em resposta à introgressão do ADN mitocondrial, e de resistência a doenças poderá explicar a vantagem evolutiva desta introgressão”, explica o investigador.

Este estudo contou ainda com a participação do investigador da Universidade de Montpellier Pierre Boursot, e insere-se num projecto de cooperação internacional – Laboratório Internacional Associado (LIA) “Biodiversidade e Evolução” – entre o CIBIO-InBIO e duas instituições do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) em Montpellier, França. Para além disso, o artigo integra o doutoramento de Fernando Seixas, realizado em cotutela entre as Universidades do Porto e de Montpellier.