Ana Luísa Amaral estava a passear a cadela, Emily Dickinson (nome da poeta americana que traduziu para português e sobre quem fez a a tese de doutoramento), quando recebeu o telefonema da Presidente do Património Nacional Espanhol, a anunciar-lhe a atribuição, por aquela instituição e pela Universidade de Salamanca, do XXX Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana.  Aconteceu próximo do meio-dia, o telefonema que antecedeu tantos outros, de felicitações pela conquista do mais importante reconhecimento da poesia em espanhol e português, a intercetarem-se neste dia e a transformarem o quotidiano que, tantas vezes, Ana Luísa Amaral nos devolve em poema.

No trabalho da escritora,  interessa-lhe a observação do quotidiano “e o transcendente”, acrescenta, sendo que este “transcendente também faz parte do quotidiano”. A também investigadora e professora aposentada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP) ficou naturalmente, “muito feliz” por tudo o que o prémio representa, nomeadamente por ser o reconhecimento de todo o seu trabalho e todos os anos dedicados ao que, para si, é “sempre uma necessidade”: a escrita.

E é “uma grande honra, naturalmente. Sendo um prémio iberoamericano, são tão poucos os portugueses que o receberam”, confessa.

Candidatura apresentada pelas universidades do Porto e de Évora

“Há alguns anos, em Florença, no intervalo de um evento, Ana Luísa Amaral revelou-me o júbilo que sentia ao sentar-se à mesa de café, com um caderno e um lápis, apenas. Recordei-me desta confidência ao reler o início de O Grito: Variações: “O caderno onde escrevo, trouxe-me a minha filha de viagem. Tem O Grito de Munch sobre o corpo. Sinuoso e disforme, auto-retrato raso, a boca em verde, as mãos acompanhando a curva da cabeça e o resto em disjunção – como esse céu.” (Entre dois rios e outras noites) Não conheço outra voz na poesia portuguesa que nos revele essa disjunção, amiúde despoletadora do pathos – dos gritos do coração de que falava Sylvia Plath, através de um registo tão sereno e, simultaneamente, tão intenso, à semelhança da Emily Dickinson que tanto a inspirou e que ela tão bem verteu para português; como a leva a verter, aliás, Louise Glück, essa outra herdeira da poeta de Amherst. É assim, com serenidade, que o quotidiano emerge no poema, na memória, elevando à familiaridade, à vizinhança, o que antes persistia distante: “Serenamente, alguma coisa lembro. Japoneiras e túneis só ideário imaginado; o mesmo se passando com comboios e divãs. E todavia, esses quatro pólos tão dispersos bem podiam ter sido pontos cardeais de história a sério.” (Ara)

Este é apenas um excerto do texto de Mário Avelar, Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, uma das cerca de 30 instituições que de Portugal, Argentina, Brasil, Colômbia, Itália, Áustria, Estados Unidos da América, Porto Rico, Inglaterra e Espanha apoiaram a candidatura ao XXX Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana, apresentada pela Universidade do Porto e pela Universidade de Évora.

Na proposta de candidatura pode ler-se que o trabalho de Ana Luísa Amaral se articula em várias direções “que se combinam com grande coerência”. Uma escrita em que à “dimensão estética” e “experimentação formal” se une um “sentido ético” e em que a “tradição e inovação, atemporalidade e circunstância coexistem com um excecional equilíbrio e originalidade”.

Uma das vozes mais originais da literatura portuguesa

Um trabalho “fundamental para dar voz e destaque ao património literário construído no feminino”. Foi assim que a Ministra da Cultura, Graça Fonseca, classificou a obra de Ana Luísa Amaral, numa reação à atribuição do XXX Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana.

Numa nota enviada pelo Ministério da Cultura, pode ler-se que este último prémio “vem somar-se ao reconhecimento nacional e internacional de uma das vozes mais originais da literatura portuguesa dos últimos trinta anos”.

A mesma nota enaltece igualmente “uma obra que, partindo do seu centro nevrálgico na poesia, se desenvolve também, em paralelo e em permanente diálogo, com o teatro, a narrativa, a literatura infantil, o ensaio e a tradução”.

O Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana reconhece anualmente a obra poética de um autor vivo, que contribui de forma significativa para o património cultural deste conjunto de países. Com um valor pecuniário de 42 mil euros, trata-se do mais importante reconhecimento da poesia em espanhol e português.

Ana Luísa Amaral é, de resto, apenas o terceiro autor português a receber o galardão depois de Sophia de Mello Breyner (2003) e Nuno Júdice (2013), e o quarto escritor lusófono a ser distinguido, numa lista que inclui também o brasileiro João Cabral de Melo Neto (1994).

Sobre Ana Luísa Amaral

Considerada uma das mais relevantes poetisas da atualidade, Ana Luísa Amaral é licenciada em Germânicas e doutorada em Literatura Norte-Americana pela Faculdade de Letras da U.Porto (FLUP), faculdade onde desenvolveu atividade docente nos domínios de Literatura e Cultura Inglesa e Americana. Atualmente aposentada da docência, é membro da Direção do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, no âmbito do qual dirige o grupo internacional de pesquisa Intersexualidades.

Estudiosa da obra de Emily Dickinson e referência internacional no campo dos Estudos Feministas, conta com uma importante obra realizada no campo académico, da qual se destaca o ensaio “Dicionário da Crítica Feminista”, em coautoria com Ana Gabriela Macedo.

A nível literário, é autora de mais de três dezenas de livros de poesia, teatro, ficção e literatura infantil, estando ainda representada em diversas antologias portuguesas e estrangeiras. Os seus livros estão publicados em países como Inglaterra, Brasil, França, Espanha, Suécia, Itália, Holanda, Colômbia, Venezuela, México e Estados Unidos da América.

Entre as distinções que recebeu pela sua produção literária incluem-se o Prémio Literário Casino da Póvoa (2007), o Prémio de Poesia Giuseppe Acerbi (2007), o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (2008), o Prémio Rómulo de Carvalho/António Gedeão (2012), o Premio Internazionale Fondazione Roma: Ritratti di Poesia (2018), o Prémio de Ensaio Jacinto do Prado Coelho (2018), o Prémio Literário Guerra Junqueiro (2020) ou o Prémio Vergílio Ferreira (2020).