Cerca de um ano antes do seu falecimento, em agosto passado, Ana Luísa Amaral concedeu uma entrevista à U.Porto Press. Pela Liberdade: Respirações (versão em inglês A Breath of Freedom), uma publicação da Editora da Universidade do Porto, da sua autoria, deu o mote para essa conversa.

Ana Luísa Amaral, antiga investigadora e professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e consagrada escritora e “poeta” portuguesa (conforme se autointitulava), dispensa apresentações. Ainda assim, na entrevista que se segue é possível ficar a conhecer um pouco mais da obra e convicções deste nome maior do panorama literário contemporâneo, na primeira pessoa.

Como nasceu esta obra? Quais as motivações que estiveram na sua origem?

No início de 2019 um colega da Faculdade de Letras, o Professor Gaspar Martins Pereira, contactou-me, perguntando-me se eu poderia fazer um poema sobre a liberdade para abrir um congresso que estavam a organizar – “A Construção das Liberdades”. Este congresso deveria ter tido lugar em maio de 2020. Já em 2020, contactou-me novamente, dizendo que o congresso tinha sido adiado para novembro de 2020. Ou seja, o que era para ter sido um congresso com muitos participantes (quer portugueses, quer estrangeiros) transformou-se num congresso muito mais pequeno, devido ao avanço da pandemia e às medidas de contingência tomadas pelo Governo.

Na altura, eu tinha uma série de poemas em torno das questões da liberdade, embora estivesse a preparar um poema longo – Dissidências: das Respirações. Entretanto contactou-me a Professora Fátima Vieira [Vice-Reitora da Universidade do Porto para a Cultura e Museus e docente da Faculdade de Letras], dizendo que tinha falado com o nosso colega e que estariam a pensar em publicar o meu poema numa espécie de libretto (porque eu tinha dito que era um poema longo). E eu, em vez de lhes dar o tal poema longo, dei-lhes cinco poemas inéditos que, cada qual à sua maneira, versavam o tema da liberdade.

De que forma “respira” a liberdade através destes seis poemas?

De formas muito diferentes. Além disso, a liberdade respondeu já por tantos nomes! Representaram-na já de tantas formas… Como uma mulher, nua da cintura para cima, ou meio desnudada, com uma bandeira na mão…
Eu acho que aquilo a que nós chamamos liberdade – e a vontade da liberdade – existe no que nós, espécies todas, temos de mais íntimo. Que é a vontade da vida, no fundo… é a vontade da vida! Liberdade é muita coisa. Mas, quando pensamos em desejo de liberdade, só pensamos em seres humanos, não nos outros seres. Ora, a liberdade está dentro de todos os que habitam o planeta. Está num peixe, por exemplo, que se debate numa cana de pesca. Porquê? Porque quer ser livre!
Todos estes poemas são sobre a liberdade.

O primeiro tem a ver connosco. É sobre Portugal. Tem a ver com o nosso passado nacional coletivo e o nosso presente. “Atrás de nós, / os mastros // à nossa frente, os monstros”. Os monstros que nos aparecem, que tanto podem ser monstros económicos, como pode ser este monstro sem vida que é o “Covid”, que precisa de um hospedeiro para conseguir viver. Tem a ver também com a problemática do sonho na parte final: “e na parede / os astros”.

“As cores da servidão” é, naturalmente, sobre a liberdade. São dois poemas que versam a questão da raça, da classe. E as questões da ausência de liberdade e da reprodução dos mecanismos de opressão pelas classes dominantes no Brasil, neste caso.
Estes poemas foram escritos num avião, numa viagem entre São Paulo e Rio de Janeiro e aconteceu mesmo isto. Ela entrou, de facto, no avião para a primeira fila e “era loura, mala de mão / macia em boa pele // À sua frente, e jovem como / ela, o marido elegante e confortável / na cor da sua íris internacional / Atrás dos dois, na fila de embarcar / e era quase menina, uma criada / touca branca e bordada / e uma criança / aconchegada ao peito”. É um poema que tenta refletir sobre a aprendizagem desses mecanismos de opressão, através de uma criança.

“A outra servidão: paisagem com dois cavalos” é também sobre a ausência de liberdade e sobre outro tipo de opressão: aquela que nós, humanos, arrogantemente exercemos sobre aqueles que têm menos poder do que nós. Neste caso são os cavalos, que aqui são comparados com os negros e com as mulheres. E estes instrumentos de tortura, como é dito – “mais o freio, ou bridão, / parecido com aquele colocado na boca das mulheres / que desobedeciam,” –, isto acontecia no século XVI, de facto. Nos séculos XVI/XVII havia uma figura, que era a figura da megera (shrew, em inglês), uma mulher que desobedecia ao marido, que falava demais… sobretudo que era rebelde e não se conformava com as normas psico-socio-sexuais impostas às mulheres. Ou seja, as mulheres deviam ser recatadas, deviam ser obedientes, deviam “apagar-se” perante o marido e estas mulheres não o faziam. Estava, até, previsto haver penas [para estas mulheres]. Esta figura estava juridicamente legislada. Então punham-lhes freios na boca e passeavam-nas pela aldeia, como exemplo para as outras [mulheres]. Esses freios eram semelhantes aos que se usavam nos escravos: punha-se também um freio ou um bridão na boca dos escravos porque muito deles tentavam envenenar-se; não queriam viver escravos! Isto aconteceu, de facto, até terminar a escravatura e era horrível! E estes animais [os cavalos], que “não criam caos nem desacato”, que docilmente acatam, são eles também uma metáfora para a questão da liberdade.
Todos estes poemas tematizam, assim, a questão dos corpos dóceis; dos corpos que são violentados.

“O tom da liberdade” também; no fundo [fala sobre] os mecanismos de domesticação. Tal como com as mulheres. “Aprender pela minha gata / o tom da liberdade: / o estar quando se quer / e o não estar quando não”. Mas, por outro lado, onde está a liberdade dela? Quando digo “Mas como, se as paredes / são fechadas e as noites de miar / uma utopia? / Só no telhado e em pura nostalgia: / o cheiro // a tempo / verdadeiro –”.
É a gata, mas também somos nós, no meio desta pandemia, já que para nós “as noites de miar”, as noites de liberdade se transformaram numa utopia! E “as noites de miar” são a normalidade, ao fim e ao cabo. É isto que é normal para um gato. Assim como é normal para um ser humano abraçar outro ser humano.

Já “A luta” é uma brincadeira… É uma alegoria sobre a luta pelo poder. A questão do feminismo está aqui só esboçada. O enxoval que a rapariga não quer…os livros são ameaçados, ou seja, o saber está ameaçado pela domesticidade, como se fosse impossível haver domesticidade e sabedoria ao mesmo tempo… E isto pode levar-nos novamente à questão das mulheres e dos freios nas suas bocas… Porque se extremarmos a figura da megera, chegamos à bruxa. As bruxas eram mulheres que sabiam; mulheres que tinham conhecimentos (por exemplo, lidar com ervas, fazer curativos…). Mulheres e sabedoria foi algo condenado durante muitos séculos. As mulheres não deviam saber. “A luta” é, em primeiro lugar, a luta entre o domínio do doméstico e o domínio do público, sendo que os livros pertenceriam ao domínio do público. Ou ao domínio do político, porque é o domínio do saber. De facto, saber é poder. É um jogo sobre a forma como a democracia se constrói. E é muito irónico porque são as lutas internas. “Agora, o problema não era / o invasor, mas a divisão interna / os ódios recalcados. // O que interessava agora / era sobreviver / ser livro.” E não “ser livre”. “Ser livro” equivaleria a “ser livre”.

“Pela Liberdade: Respirações” e “A Breath of Freedom” (versão em inglês) foram publicados pela U.Porto Press. (Foto: U.Porto Press)

Em que medida poderão estes poemas contribuir para uma reflexão, e ação, sobre as injustiças e restrições à liberdade da atualidade?

Toda a arte é, de alguma maneira, uma excrescência; é excedente. Com uma sinfonia, por exemplo, não construímos um móvel, uma casa, uma cama… mas precisamos de uma sinfonia, de um poema, da beleza, da obra de arte… Nós, seres humanos, tornamos absolutamente necessário aquilo que aparentemente é inútil. Mas não é! É absolutamente necessário porque é inútil, ou seja, porque pertence ao domínio do impalpável, do simbólico. E nós precisamos do simbólico, de rituais, de coisas que nos estruturem, para lá da roupa que pomos em cima do corpo, da comida com que nos alimentamos, do sono de que precisamos para ficarmos saudáveis. Nesse sentido, qualquer expressão artística, se for verdadeira, e se for genuína, pode ajudar o ser humano a abrir-se ao mundo e, assim, a sentir-se mais livre.

No caso concreto destes poemas, o próprio tema do conjunto Pela Liberdade: Respirações orienta, de alguma maneira, as leitoras e os leitores para duas questões: para a ligação entre a liberdade e a tirania, ou barbárie, e para a respiração enquanto duplo movimento: inspiração e expiração. O movimento de inspiração está ligado à criatividade, mas nos nossos tempos está ligado também a esse acontecimento tão traumático e tão terrível que foi o assassinato do negro [George Floyd] nos Estados Unidos, em que ele repetiu durante oito minutos “I can’t breathe!”.  E as respirações são estas também!… Gostaria que estas questões fossem pensadas pelas pessoas que lerem estes poemas…

Quais são as problemáticas da sociedade atual que mais a preocupam?

O medo… o ódio… a jactância… A jactância pode ser aplicada também à questão das redes sociais; a arrogância de acharmos que dominamos tudo… E, afinal, um “bicharoco” [Covid-19] que nem é bicho; um ser que nem é ser! Um vírus! Dominou-nos completamente. O ódio é uma questão bem mais complexa: algo que está na epiderme social e que não deixa de estar ligado à arrogância porque tem a ver, também, com supremacia. O ódio que está ligado ao medo… é o medo do outro que eu não conheço e que aprendi, pela forma como fui educado ou educada, ser uma ameaça para mim. Ou porque é negro – e os negros deviam estar no sítio que lhes compete –, ou porque é gay, ou porque é mulher e tem demasiados direitos.

Também a ignorância. Só a ignorância pode explicar que se diga, por exemplo, que os negros são menos inteligentes do que os brancos. Não há outra razão! Só a ignorância pode explicar que se diga que não há evolução das espécies. Só a ignorância explica que se acredite na Teoria da Terra Plana.
O ódio vai-se desenvolvendo dentro deste clima de arrogância e medo. E as forças radicais de extrema-direita aproveitam-se disso. E estão a aproveitar-se disso, claramente. Do medo. Do medo do imigrante, que vem aí; do negro, que não é branco como eu, e me vai tirar o emprego; do cigano, que recebe subsídio social; do medo do refugiado… Foi assim que o Brexit ganhou em Inglaterra! Foi com o argumento de que tinham de sair da União Europeia, porque “vêm para cá os estrangeiros tirar o emprego aos ingleses, aos nossos, à nossa gente!…”

Se lhe fosse pedido que selecionasse um destes poemas como arauto da liberdade, qual escolheria?

Talvez… “A outra servidão: paisagem com dois cavalos”. Porque fala na espécie, fala em raça, fala em género e fala em colonização.

“Estão lado a lado,
naquela praça em frente da igreja,
Nesse calor de quando o mundo oscila,
na linha do horizonte,
e o rio quase defronte:
uma miragem

Estão lado a lado,
sujos de pó, as cabeças tombadas para a frente,
unidos pelo jugo desigual, a carroça apoiada no muro,
mas pronta a ser unida aos corpos deles

Estarão feitos assim velhos amigos,
os corpos encostados mesmo neste calor,
pela aliança muda?

Arreios, cabeçadas, todos os instrumentos
do que parece ser mansa tortura
mais o freio, ou bridão,
parecido com aquele colocado na boca das mulheres
que desobedeciam,

e era isso há muito tempo,
pelo menos quatro séculos,
ou semelhante ao que se usava
nos escravos, cobrindo-lhes a boca
para que não se envenenassem,
porque se recusavam a viver
escravos
e era isso quase agora, no século passado

Mas eles não criam caos nem desacato,
não se revoltam nem tentam o veneno,
se o freio agudo lhes fere, pungente,
gengiva, língua, osso,

Só se encostam quietos, um ao outro,
cabeças derrubadas para a frente,
à espera do chicote
que chegará depois com a carroça, pronta,
para a entrega das coisas
humanas, o comércio

E é esta a mais perfeita
das colonizações”

A versão original da entrevista pode ser consultada no portal da U.Porto Press.

Sobre Ana Luísa Amaral

Considerada uma das mais relevantes poetisas da atualidade, Ana Luísa Amaral nasceu em Lisboa em 1956. Licenciada em Germânicas e doutorada em Literatura Norte-Americana pela FLUP, foi ali que desenvolveu atividade docente nos domínios de Literatura e Cultura Inglesa e Americana. Em paralelo com a docência, foi investigadora do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, organismo que dirigiu durante mais de uma década.

Estudiosa da obra de Emily Dickinson e referência internacional no campo dos Estudos Feministas, conta com uma importante obra realizada no campo académico, da qual se destaca o ensaio Dicionário da Crítica Feminista, em coautoria com Ana Gabriela Macedo.

Ana Luísa Amaral assinou dezenas de títulos de poesia publicados, além de  ter escrito teatro, ficção e vários livros para a infância. Traduzida e publicada em várias línguas e países, a sua obra é editada em Portugal pela Assírio & Alvim.

Tradutora de romancistas e poetas, Ana Luísa Amaral recebeu múltiplas distinções ao longo da carreira. Destacam-se, entre outras: o Prémio Literário Casino da Póvoa (2007), o Prémio de Poesia Giuseppe Acerbi (2007), o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (2008), o Prémio Rómulo de Carvalho/António Gedeão (2012), o Premio Internazionale Fondazione Roma: Ritratti di Poesia (2018), o Prémio de Ensaio Jacinto do Prado Coelho (2018), o Prémio Literário Guerra Junqueiro (2020), o Prémio Vergílio Ferreira (2020), o Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana, ou o Prémio Literário Francisco de Sá de Miranda (2021).

Ana Luísa Amaral faleceu a  5 de agosto de 2022, vítima de doença prolongada.