Haverá alquimia nas palavras que, como Eugénio de Andrade dizia “secretas vêm, cheias de memória”? E poesia na química? Os autores de Química ao pé da letra, o mais recente lançamento da U.Porto Press, propõem-lhe um exercício de elasticidade criativa que, na realidade, não difere do desafio que nos lança qualquer palavra, signo, símbolo ou fenómeno químico. O objetivo é munir o leitor de ferramentas que lhe permitam descodificar significados, por vezes polissémicos, do léxico da química. Através de 118 palavras, seja bem-vindo a esta viagem pelo universo da química!

Um plano afetivo que se cumpre

Pode avançar para o livro como faz com um fruto: descasca primeiro o que está à superfície. Ou seja, a “cumplicidade analógica” mais óbvia entre a química e a palavra. Diz-nos a sinopse que existem “corpúsculos” a que se convencionou chamar “átomos”. A estes correspondem as letras. Os átomos agrupam-se em moléculas “e outros agregados” aos quais poderemos chamar de “palavras” que, por sua vez, originam “estruturas mais complexas (quais frases e textos)”. Será destas estruturas que resultará a matéria “que se transforma e dá vida” (ou seja, os livros). Assim sendo, o resultado final, ou seja, a química (ou a alquimia) estará para o átomo como, por exemplo, a poesia estará para a palavra.  

Dimensões como a denotação e a conotação, imediatamente reconhecíveis no trato da língua, serão suscetíveis de se identificar na química? Claro que sim! Estando a denotação “em linha com a objetividade que se procura em ciência”, a conotação já nos coloca noutro patamar que é igualmente familiar à química: o da relação.

Para além das propriedades, a ciência química também investiga as “transformações da matéria ao nível atómico e molecular”. Mais do que o singular, quer conhecer melhor a forma como estes elementos se transformam. De tão quotidianos há conceitos que já se tornaram “anódinos” e quando a revelação da “beleza das coisas comuns” se faz, há também aqui um “plano afetivo” que se cumpre.

Um trabalho de arqueologia etimológica

Química ao pé da letra parte da História e do Lugar (da química) para os Conceitos e as Entidades Químicas, passando por Técnicas Laboratoriais e, por fim, dedica um capítulo aos Instrumentos e Material de Laboratório.

Extraídas as raízes etimológicas, as palavras (de que a Química se serve) são categorizadas e apresentadas de forma alfabética e eis-nos perante um trabalho de “arqueologia etimológica”. Estas raízes colocam o “arqueólogo” em contacto com outros contextos e “outros saberes”. Compreender a proveniência de uma palavra é descobrir, por exemplo, que “molécula” terá a ver com “massa pequena” e que “substância” se ligará ao que “está na base de” ou “que subsiste”. Ao todo são 118 palavras que se desdobram e nos aproximam da Química.

“Pia número UM / Para quem mexe as orelhas em jejum” é uma mnemónica (de autoria de Fernando Pessoa), que juntamente com a comparação e a decomposição funcionaram de estratégia de aproximação, através das palavras, ao universo da Química.

Um casamento arriscado

Foi um “casamento arriscado entre uma ciência exata e as humanidades”, diz-nos João Carlos Paiva, um dos autores. O docente do Departamento de Química e Bioquímica da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP) explica que a propósito de cada conceito (e de cada palavra) o livro “abre uma janela de dialogo com outras disciplinas” (como a Psicologia, a História ou a Filosofia). São pontes que se estabelecem com outras áreas científicas na construção de um “todo que é a cultura”.

De resto, o ancorar de avanços científicos à raiz ou etimologia de palavras já nos vai sendo familiar, comprovando “o avesso da frase da moda: uma palavra vale mais do que mil imagens”.

E sendo a química a “ciência das misturas”, como lhe chama João Carlos Paiva, são ainda autores do Química ao pé da letra Carla Morais (Departamento de Química e Bioquímica e membro da Unidade de Ensino das Ciências da FCUP); Hugo Vieira (doutorado em Ensino e Divulgação das Ciências na FCUP e professor de Física e Química em escolas do ensino básico e do secundário); José Luís Araújo (doutorado em Ensino e Divulgação das Ciências na FCUP), Luciano Moreira (docente na Faculdade de Engenharia da U.Porto e Martinho Soares (licenciado em Línguas e Literaturas Clássicas e Portuguesa e doutorado em Poética e Hermenêutica pela Universidade de Coimbra, onde é investigador e professor).

O livro pode ser adquirido aqui.