A investigação em torno da qualidade da água na Guiné Bissau e a sua relação com a saúde pública decorre há 18 anos e, 33 missões depois, ainda continua, porque ainda há muito a fazer. Adriano A. Bordalo e Sá, hidrobiólogo e docente e investigador do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) da Universidade do Porto, viajou pela primeira vez para a Guiné Bissau em julho de 2006, com um laboratório nas malas. O objetivo passava por analisar a qualidade das águas que abasteciam a população da ilha de Bolama (região da Guiné-Bissau no Arquipélago dos Bijagós) e das tabancas(aldeias) contiguas, depois de relatos de vários episódios de diarreias e de problemas gastrointestinais no hospital regional.
“A pergunta que tínhamos na cabeça e à qual queríamos responder, era se havia uma relação entre estes episódios clínicos e a qualidade da água, absolutamente conscientes de que a saúde do ambiente tem impacto decisivo sobre a saúde humana. E foi para responder a esta perguntar e encontrar soluções que rumámos pela primeira vez à Guiné, numa viagem que ainda não tem fim à vista”, conta o docente do ICBAS.
Sem grande surpresa, os resultados foram evidentes: em plena época das chuvas, 80% dos locais de origem das águas usadas para consumo humano estavam contaminados com fezes (de pessoas e animais), com níveis de acidez elevadíssimos, algumas com pH igual a 1.8, “que faziam da água completamente imprópria para consumo de acordo com os padrões da OMS e da EU”, com a agravante de que, em algumas das amostras foi ainda detetada a presença de metais.
“O nosso trabalho foi recolher amostras das águas dos poços e fazer análises de microbiologia, física e química no local, imediatamente após a recolha. Para cada amostra fizemos 22 análises diferentes e a resposta à pergunta que nos levou ao continente africano era óbvia – existia uma clara relação entre os episódios de diarreia e a qualidade da água”, explica Adriano A. Bordalo e Sá.

(Foto: DR)
Perante os primeiros resultados alcançados e, depois de novas análises durante a época da seca seguinte, tendo em conta todas as variáveis (ambientais, sociais, económicas), era altura de dar os “próximos passos, que incluíam a apresentação de propostas para a resolução do problema” – proposta essa que passou pela utilização de cascas de bivalves (por exemplo ostras), compostas por carbonato de cálcio, para a redução da acidez da água.
Esta solução contribuiu também para resolver o problema de défice de cálcio das populações, como esclarece o responsável pela investigação: “Verificámos que, colocando 8 meias conchas de ostras num simples balde com 10 litros de água ácida, à noite, logo de manhã a acidez estava neutralizada e o pH aumentava para níveis aceitáveis (>6.5). Para além disso, havia outra vantagem. ao dar-se a corrosão das cascas ocorre a libertação de cálcio, que é fundamental para as populações desta região, deficitárias deste mineral. Ou seja, com esta medida simples e usando produtos naturais e locais, que de outra forma são deitados fora, resolvíamos o problema da acidez da água e contribuíamos para a redução do défice de cálcio. E, portanto, foi isto que começámos a fazer logo na segunda missão”.
A ciência lado a lado com Organizações Não Governamentais
Os resultados obtidos nas duas primeiras visitas despertaram o interesse de uma ONG espanhola, AIDA (Ayuda Intercambio y Desarrollo), que ainda hoje é parceira do ICBAS. Aplicando 80 mil euros de outro projeto arrancou com a criação de uma rede de distribuição de água nova, composta por 9 fontanários, que abastecia a população da cidade de Bolama com água, diariamente, durante 30 minutos. Logo em 2008, foi possível reduzir a incidência de diarreia nas crianças em 50%.

Laboratório de campo em Bolama. (Foto: DR)
A rede ainda hoje funciona, tendo sido ampliada, possuindo hoje um novo furo de 195 metros de profundidade capaz de abastecer todos os bairros de Bolama 3 vezes por dia. Aliás a última missão à Guiné, que decorreu em novembro de 2024, foi precisamente para avaliar a qualidade da água deste novo furo.
Para Adriano A. Bordalo e Sá, isto é, o cumprir de um propósito. “A nossa investigação ao longo destas quase duas décadas na Guiné têm tido dois objetivos fundamentais: por um lado a publicação de artigos científicos, em revistas conceituadas, contribuindo para o avanço da ciência com destaque para a África Ocidental, por outro, têm tido aplicação e impactos reais na vida das pessoas, com destaque para os mais pobres entre os pobres. Com a nossa investigação conseguimos, de facto, melhorar a vida das pessoas e isso é algo muito positivo.”
33 missões depois, o que ainda falta fazer?
Quase tudo. “Vinte anos depois, em Bolama, este problema começa a resolver-se, muito graças às intervenções das ONG´s, mas é preciso replicar este trabalho por toda a Guiné Bissau e o ICBAS tem investigação feita em todo o território, portanto é necessário encontrar forma de implementar as soluções, mesmo quando o Estado é muito frágil”, reforça o investigador.
Adriano Bordalo e Sá reconhece que a pouca vontade política, a descoordenação entre ONG’s e o desfasamento entre a realidade no terreno e quem financia e coordena os projetos são obstáculos à resolução do problema do abastecimento de água potável em todo o país. Se daqui a 20 anos as coisas estarão diferentes, só o tempo o dirá. Por agora, a garantia é a de que o empenho e a dedicação a um projeto que se tornou central na investigação em ciências biomédicas e na história do ICBAS é para continuar.