Como é que o processo de divisão das células se adaptou a alterações no número de cromossomas que ocorreram ao longo da evolução? Esta é a pergunta central do projeto que valeu ao investigador Helder Maiato, do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto (i3S), uma bolsa do Conselho Europeu de Investigação (ERC – European Research Council, em inglês), no valor de três milhões de euros. Aos 48 anos, o também professor da Faculdade de Medicina (FMUP) torna-se o o único investigador da U.Porto a juntar no curriculum uma ERC Advanced Grant (agora atribuída ), uma ERC Consolidator Grant (2015) e uma ERC Starting Grant (2010).
Neste trabalho, a equipa liderada por Helder Maiato vai estudar duas espécies geneticamente idênticas de veado – uma conta com seis cromossomas e a outra com 46, como os humanos – e tentar perceber os desafios com que cada espécie tem de lidar na altura em que as células se dividem.
A verdadeira motivação deste trabalho, explica o investigador do i3S, é compreender os mecanismos de evolução a nível celular: “Uma das características que nos diferencia dos chimpanzés é a diferença no número de cromossomas, porque nós “herdamos” dois cromossomas dos chimpanzés que se fundiram e deram origem a um cromossoma distinto em humanos. O ser humano tem 46 cromossomas (23 pares) e o chimpanzé tem 48 (24 pares). Isso levanta uma série de questões: a fusão de dois cromossomas deu-nos alguma vantagem na sobrevivência da espécie? Os processos de divisão celular são mais eficientes? Há mais erros ou menos erros? E haver mais ou menos erros é uma desvantagem?”.
Todas estas perguntas serão transpostas para as duas espécies de veados, onde a diferença no número de cromossomas é mais acentuada. Os genomas destas duas espécies já foram sequenciados e “estamos agora a ressequenciar as regiões mais repetitivas que ainda não se conhecem em conjunto com um consórcio Americano”, sublinha Helder Maiato.
Para já, adianta o investigador, “sabemos que ambas as espécies divergiram de um ancestral comum que tinha 70 cromossomas e sabemos, por exemplo, que os veados são os mamíferos que apresentam a menor incidência de cancro. Mas será que o veado que tem seis cromossomas consegue viver mais tempo sem cancro? Parece haver alguma vantagem em haver menos cromossomas, mas quão menos?”
“A cereja no topo do bolo seria perceber qual o número mínimo de cromossomas que uma célula de mamífero pode tolerar. Em laboratório, através da engenharia genética, vamos fazer a fusão de cromossomas para perceber esse limite. Vamos tentar criar uma célula de mamífero com um único cromossoma, para perceber se é possível compactar toda a informação genética num só cromossoma, à semelhança do que acontece naturalmente em alguns insetos”, acrescenta.
“Terá repercussões fundamentais para compreendermos e tratarmos o cancro no futuro”
O projeto premiado nasceu há dez anos no i3S pelas mãos de “duas alunas de doutoramento de grande coragem” – a Danica Drpic e a Ana Almeida – que começaram por estabelecer o sistema, e teve inspiração do geneticista António Lima de Faria, considerado um dos “pais” da biologia dos cromossomas, que faleceu, entretanto, com 102 anos, em 2023.
“Eu tinha como missão interior, se ganhasse esta ERC, ir visitá-lo à Suécia para lhe dar a notícia pessoalmente. Ele foi dos primeiros a olhar para este veado e viu a pergunta. A exposição a essa pergunta e as muitas conversas que tive com ele inspiraram-me, por isso. este projeto é dedicado à sua memória e ao seu espírito pioneiro”, refere Helder Maiato.
O investigador destaca também o contributo do cientista japonês Naoyuki Okada no sentido de “avançar com a ideia de explorar ainda mais o sistema. Foi ele quem começou a fazer experiências comparativas sobre a divisão celular com células destes dois veados. Isso permitiu-nos começar a construir este projeto, que agora terá pernas para andar com uma equipa de jovens investigadores altamente competente e entusiasta, a quem agradeço o facto de termos chegado até aqui”
O financiamento atribuído da ERC, sublinha o investigador, “dá-me tranquilidade para, durante cinco anos, poder pensar só em Ciência, sem ter de me preocupar um segundo com a sua utilidade imediata. Acredito, e a História apoia-me, que as grandes revoluções científicas nascem primeiro da curiosidade do Homem. Ainda bem que o ERC percebeu isto e os resultados deste programa estão à vista, com 14 prémios Nobel atribuídos a investigadores que receberam este apoio, da Física à Medicina».
Um aspeto curioso, acrescenta ainda o investigador, “é que as alterações no número de cromossomas são a característica mais transversal em cancros humanos que se conhece. Ou seja, as células de cancro conseguiram ao longo de uma vida recapitular aquilo que a evolução demorou milhões de anos a fazer”.
“Estou absolutamente convencido de que a nossa pergunta, por enquanto meramente básica, terá repercussões fundamentais para compreendermos e tratarmos o cancro no futuro”.
Sobre Helder Maiato
Licenciado em Bioquímica (1998) e doutorado em Ciências Biomédicas pela Universidade do Porto, Helder Maiato é Investigador Coordenador do grupo de investigação «Dinâmica e Instabilidade Cromossómica» e Professor Catedrático convidado da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP). Autor de mais de uma centena de publicações científicas, é a partir do Porto que se tem distinguido internacionalmente no estudo da divisão celular.
Além das três ERC atribuídas pelo Conselho Europeu de Investigação, Helder Maiato conquistou vários prémios e financiamentos nacionais e internacionais, incluindo o Prémio Crioestaminal (2007), Programa da Fundação Calouste Gulbenkian Frontiers of Life Sciences (2007), Programa Human Frontier (2010), Prémio Louis-Jeantet Young Investigator Career (2015), FLAD Lifescience 2020 (2015), Prémio de Excelência na Investigação Científica da Universidade do Porto (2019), Concurso la CaixaResearch de Investigação em Saúde (2021), prémio Gilead Génese (2023), entre outros.
Em 2016, foi eleito por pares para integrar a Organização Europeia de Biologia Molecular (European Molecular Biology Organization – EMBO), pelo mérito e a excelência do trabalho científico desenvolvido nesta área do conhecimento. Em junho deste ano, foi um dos 15 membros eleitos para, durante três anos, integrar o Council, o órgão diretivo da EMBO responsável pela gestão da organização.