Num recente estudo publicado na revista iScience, uma equipa de investigação internacional, liderada pelo Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (BIOPOLIS-CIBIO) da Universidade do Porto, desvendou o mistério por detrás da origem das raças de cão de gado. O estudo centra-se na complexa história evolutiva de raças caninas como o Serra da Estrela, o Mastim Tibetano, entre outras, e revela que as raças da Europa e da Ásia Ocidental têm uma origem comum, enquanto as raças da Ásia Oriental são bastante distintas.

A utilização de cães para proteger os rebanhos dos predadores, como o lobo ou o urso, remonta ao período histórico que se segue à domesticação do gado, com fosseis de ovelhas e cães encontrados juntos datados de cerca de 3700 a.C. O uso tradicional deste tipo de cães estende-se por todo o “Velho Mundo”, desde as cadeias montanhosas dos Himalaias até às planícies alentejanas em Portugal, e está bem documentado em diversos tipos de obras, incluindo, por exemplo, arte romana e literatura, na qual o “Antigo Testamento” e a “História dos Animais” de Aristóteles são emblemáticos. No entanto, a origem deste tipo de cães com a função de guardar rebanhos permanecia ainda uma incógnita.

Os investigadores partiram da hipótese, já sugerida por outros, de uma origem única para todos os cães de gado no Crescente Fértil, mas encontraram resultados inesperados. “Ficamos surpreendidos ao descobrir que as raças da Europa e da Ásia Ocidental estão intimamente relacionadas e claramente têm uma origem comum, enquanto as raças da Ásia Oriental são muito distintas”, refere Diogo Coutinho-Lima, primeiro autor do estudo e estudante do doutoramento em Biodiversidade, Genética e Evolução da Faculdade de Ciências da U.Porto (FCUP), a desenvolver o seu projeto no BIOPOLIS-CIBIO.

Foram identificadas duas linhagens de cão de gado diretamente relacionadas com diferentes populações de cães que existiram há mais de 5.000 anos. “Os nossos resultados indicam que, em pelo menos duas regiões do mundo, culturas humanas distintas começaram a utilizar cães para proteger o gado, levando à formação de dois grupos geneticamente diferentes, mas que apresentam comportamentos semelhante”, acrescenta Diogo Coutinho-Lima.

Para este estudo, foi utilizada informação genómica de mais de 300 cães de gado distribuídos pela Europa, Ásia e Norte de África, juntamente com dados públicos de cães modernos e ancestrais, para desenvolver uma perspetiva abrangente sobre a ancestralidade, origem geográfica e diversidade genética destes cães cuja função é fundamental para a proteção do gado.

Este trabalho destaca ainda o profundo impacto das práticas culturais de pastoreio na trajetória evolutiva dos cães, usados para proteger o gado em toda a Eurásia. Registos históricos confirmam que, durante a transumância – migração bianual do gado – cães de diferentes raças se reproduzem entre si. No entanto, os investigadores observaram que os cães rafeiros também parecem estar incluídos na dinâmica do desenvolvimento destas raças.

“Entre os criadores de cães existe geralmente o cuidado de não misturar raças diferentes para que se preservem as características das várias raças” refere Raquel Godinho, investigadora principal do grupo ECOGEN no BIOPOLIS-CIBIO e autora sénior do estudo. No entanto, “descobrimos que os cães de gado têm no seu genoma sinais de grande mistura com cães rafeiros, o que desafia essa prática dos criadores, uma vez que a mistura parece não ter relevância para a função que caracteriza estes animais”.

Quatro raças de cão de gado em Portugal

Em Portugal, existem quatro raças de cão de gado: o famoso Serra da Estrela, o cão de Gado Transmontano, o cão de Castro Laboreiro e o Rafeiro do Alentejo. Apesar das evidentes diferenças entre essas raças, Diogo Coutinho-Lima explica que, geneticamente, elas não são muito distintas entre si nem de outras raças europeias: “A explicação mais provável que encontramos para este resultado está relacionada com as migrações de gado que conectavam a Península Ibérica quando a pastorícia era uma componente substancial da vida das pessoas”.

Estas migrações permitiam o fluxo génico entre raças distintas e as marcas disso são ainda hoje bem visíveis nos genomas destes cães. “Presumimos que os pastores permitiam a reprodução livre dos cães, uma vez que a “pureza” não seria uma preocupação para quem apenas precisava de um cão que executasse bem o seu trabalho”.

A reprodução entre diferentes raças de cães de gado, e entre estes e cães rafeiros, que os autores identificam como transversal em toda a Eurásia, está acoplada a outros benefícios para os cães. “As raças de cães de gado que estudamos e que ainda são usadas para trabalho apresentam níveis baixos de consanguinidade” explica Raquel Godinho.

Em contraste, raças de cães de gado que atualmente são apenas usadas como animais de companhia, cujas linhagens não apresentam esta vincada componente de mistura, mostram maior consanguinidade. “É provável que um aumento da consanguinidade possa afetar negativamente a capacidade de trabalho dos animais. Isso seria muito indesejável se acontecesse nos cães de trabalho, particularmente neste momento em que as populações de lobos estão em recuperação e os cães de gado são a ferramenta mais eficaz na proteção dos rebanhos”, nota a investigadora.

Este estudo retrata um avanço significativo na nossa compreensão dos cães de gado e oferece uma perspetiva mais aprofundada sobre as suas origens e trajetória evolutiva. As descobertas salientam a importância de considerar contextos históricos, além dos genéticos, no estudo de espécies domésticas. Atualmente, esta equipa continua as suas investigações no sentido de identificar as regiões do genoma dos cães de gado responsáveis pelos comportamentos de proteção característicos destes animais.