A recolha de amostras fecais de gaivotas, em 2008 e 2023, e de amostras de água de superfície da orla costeira do Porto, em 2023, permitiu a uma equipa de investigadores do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) da Universidade do Porto, do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge de Lisboa (INSA) e do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (CIIMAR) caracterizar o perfil de dispersão ambiental de Salmonela (Salmonella spp.), um conhecido risco de saúde pública e “a segunda doença transmitida por alimentos mais reportada na Europa”. Os resultados, agora revelados, permitiram concluir que a prevalência de Salmonela resistente a antimicrobianos registou uma redução considerável.
O papel das gaivotas na transmissão da doença, pelo seu contacto com o ambiente urbano, marítimo e terrestre, através do contacto com resíduos, com águas e com os próprios humanos, despertou o interesse do grupo em perceber a evolução da prevalência da bactéria entre os dois períodos temporais estudados. Por outro lado, por ser uma espécie migratória e protegida pelo estatuto jurídico dos animais, a gaivota representa, nas palavras dos investigadores, uma preocupação ambiental acrescida, cuja população tem vindo a aumentar ao longo do tempo.
“A gaivota não está sujeita a controlo populacional. Portanto, por ser uma espécie protegida [aos olhos da população é considerada] uma praga, porque há um desenvolvimento da espécie muito grande, potenciado pelo facto de encontrarem alimento e abrigo nas cidades”, refere Inês Rodrigues, investigadora do ICBAS e do CIMAR que encabeçou o estudo, coordenado pelo docente do ICBAS, Paulo Martins da Costa.
Já a investigadora Joana Prata (ICBAS) alerta para “um desequilíbrio ecológico” preocupante, uma vez que “as formas de controlo ecológico das espécies se dão, ou pela limitação de recursos, geralmente alimentar, ou por predação”. No caso das gaivotas, nenhuma das duas é aplicável, já que “o sistema urbano atual permite que a população de gaivotas cresça sem haver um limite de recursos, consentindo que elas se continuem a alimentar”, esclarece a também investigadora do estudo.
Apesar disso, os investigadores acreditam que a evolução se dá no sentido positivo, como o confirmam os resultados desta investigação comparativa, que revelaram uma clara diminuição da prevalência de Salmonela nas amostras de 2023, o que significa que o tratamento de águas residuais está a ser feito com maior rigor e que “os pequenos gestos ambientais como, por exemplo, não depositar os resíduos a céu aberto” têm surtido resultados efetivos.
Igual melhoria foi notada no perfil de resistência aos antibióticos. Ou seja, as Salmonelas isoladas em 2023 têm menos resistências do que as obtidas em 2008, sendo essa uma evidência das medidas de controlo da prescrição de antibióticos por médicos e médicos veterinários, admitem os investigadores.
Resistência antimicrobiana: a “pandemia silenciosa”
“Uma crise mundial, que está a escalar de forma preocupante”. É desta forma que Inês Rodrigues define o conceito que afeta invariavelmente humanos, animais e ambiente e que tem vindo a ser estudado ao abrigo da perspetiva “One Health”. A resistência a antibióticos deve ser, nas palavras da investigadora, um trabalho conjunto de “médicos, médicos veterinários, autoridades, biólogos e ecologistas” no sentido de “recomendações cada vez mais restritas” em termos, não só de prescrição de antibióticos, mas também “de gestão ambiental”.
Autênticos “ciclos silenciosos”, acrescenta Joana Prata, que se revelam “uma ameaça à saúde pública”, muitas vezes causadores de males maiores: “Quando falamos em Salmonelas resistentes a antimicrobianos estamos a falar de ameaças à saúde pública, e é importante pensarmos não só nas vias diretas de contaminação, como também nas vias ambientais, que podem depois vir a causar infeção no ser humano”, esclarece.
Salmonelas, gaivotas e resistências. Questões que compõem apenas “uma pequena peça do puzzle”, que deve ser visto num conjunto alargado e preocupante. “Não podemos esquecer que a gaivota, sendo uma espécie migratória, pode contaminar-se nos nossos estuários com uma Salmonela resistente, e de seguida voar para outro local do mundo, levando-a com ela, e contaminando um curso de água”, alerta Joana Prata.
Os resultados do estudo levado a cabo pelo grupo de investigação do ICBAS, INSA e CIIMAR, do qual fazem parte outros investigadores, foram publicados na revista Microorganisms.