“São viagens das quais não se regressa”. É assim que Ana Luísa Neves – licenciada em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP) – se refere às várias experiências de voluntariado que viveu em África. Foi precisamente durante uma dessas experiências, vivida em 2012, em Moçambique, que a investigadora, que terminou recentemente o Programa Graduado em Áreas da Biologia Básica e Aplicada (GABBA) da U.Porto, teve a ideia de um protótipo para um teste de assistência pré-natal para mulheres grávidas que vivem em áreas isoladas.

A ideia, desenvolvida no âmbito do programa Althea-Imperial, uma iniciativa que visa inspirar uma nova geração de mulheres em ciência e tecnologia, através do suporte ao desenvolvimento de ideias inovadoras, valeu-lhe o 2.º prémio no prestigiado concurso de empreendedorismo empresarial promovido pelo Imperial College London (Reino Unido), instituição onde Ana Luísa desenvolveu a sua tese de doutoramento, concluída em março deste ano.

O protótipo consiste numa picada de dedo que permite a realização dos testes fundamentais recomendados durante a gestação, em tempo real. Vem solucionar um problema encontrado, por exemplo, em pequenas vilas no interior de Moçambique, em que as mulheres tinham de deslocar-se durante longas horas até um hospital, onde pudessem realizar esses rastreios. Em Portugal, e na generalidade dos países desenvolvidos, todas as mulheres grávidas realizam este tipo de rastreios periodicamente, e de forma gratuita.

O prémio vai permitir a Ana Luísa Neves fortalecer o estabelecimento de novas parcerias relativamente à validação e ao desenvolvimento final do protótipo. Enquanto isso, a investigadora desenvolve o seu projeto no Imperial College London, onde cumpre as funções de Research Associate no Centre for Health Policy, além de ser docente voluntária na FMUP.

Licenciada (2016) e Mestre (2008) Medicina pela FMUP, Ana Luísa Neves soma no currículo as experiências de voluntariado que, entre 2008 e 2012, a levaram a vários países africanos. Entre elas incluem-se as passagens pela Guiné-Bissau (2008) e pelo Senegal (2009), integrada em projetos da AMI – Assistência Médica Internacional e da Associação Médicos do Mundo, respetivamente. Regressaria a África, em 2012, como Heath Advisor de um projeto desenvolvido na Casa Madre Maria Clara, em Maputo. Atualmente, é voluntária da Médicos do Mundo no Reino Unido.

Naturalidade? Porto

Idade? 33 anos

– De que mais gosta na Universidade do Porto?

Das pessoas. Da sua integridade, capacidade de resiliência e reinvenção.

– De que menos gosta na Universidade do Porto?

Não sendo uma questão específica da U.Porto, das limitações orçamentais que dificultam a contratação de pessoal docente.

– Uma ideia para melhorar a Universidade do Porto?

Aproveitar as oportunidades disponíveis através dos fundos de financiamento e promover projetos de colaboração entre instituições, de forma a reinvestir o capital científico produzido pelos programas internacionais suportados pelo Estado.

– Como prefere passar os tempos livres?

A conversar; a viajar (especialmente em cenários naturais); a desenhar; a pintar e a cozinhar.

– Um livro preferido?

Tantos, que nunca sei responder e, seguramente, me esquecerei do preferido nesta lista. Todos do Vergílio Ferreira. A poesia da Sophia de Mello Breyner e do Mario Benedetti. O Livro do Desassossego, do Bernardo Soares. E livros “que fazem de conta que são para crianças”, como O Principezinho e O Meu Pé de Laranja Lima.

– Um disco/músico preferido?

Ao final da tarde: Ella Fitzgerald, Tom Jobim e Caetano Veloso. A trabalhar: os noturnos de Chopin e Dvorak.

– Um prato preferido?

Sopa! Que não há parecida com a nossa, em Portugal, em mais nenhum sítio do mundo!

– Um filme preferido?

Before Sunset; Jeux d’enfants; O Tigre e a Neve e os Star Wars.

– Uma viagem de sonho?

Viagens são todas de sonho… mas África, realizada e sempre por realizar.

 – Um objetivo de vida?

Não perder a capacidade de me encantar, de olhar para o lado com mais sol. Ensinar e, acima de tudo, aprender com gente mais nova. Questionar e pensar em novas soluções. Pôr mãos à obra e criar.

– Uma inspiração? (pessoa, livro, situação…)

A minha avó, que resistiu ao “suborno” de uma máquina de costura – o sonho das miúdas da época – e continuou a estudar contra a vontade dos pais.

– O projeto da sua vida…

O meu país deu-me formação e as oportunidades que procurei, e quando não as tinha, continuou a deixar-me sonhar e a procurá-las no contexto europeu. Deu-me uma das coisas mais transformadoras em termos pessoais e profissionais: modelos a seguir. Ser capaz de retribuir de alguma forma, de pagar essa fatura ajudando pessoas mais novas, com os mesmos sonhos, é algo que me parece apenas justo (e o mais concreto, em termos de projecto de vida, que consigo desenhar).

Qual a importância, tanto a nível pessoal como profissional, de passar por uma experiência de voluntariado, numa qualquer região do Mundo?

A nível pessoal, tornou-me mais grata por viver num sítio com água, electricidade, segurança, estabilidade política e um sem número de outras coisas. Em termos profissionais, eu era provavelmente demasiado nova quando tive a minha primeira experiência de voluntariado. Ajudou-me a aprender a improvisar, sob o ponto de vista médico, mas também me mostrou uma realidade, em plena epidemia de cólera, para a qual não me podia preparar. Mostrou-me dilemas que eu não conseguia conceber: como o da mãe que se recusava a levar o filho para ser tratado no hospital central, negando-lhe, assim, a possibilidade de sobreviver, porque não podia deixar os outros três, literalmente, isolados uma semana na ilha. Mostrou-me que, na verdade, somos todos muito iguais apesar da desigualdade de circunstâncias do mundo em que vivemos. São viagens das quais não se regressa.