Lúðvík Lúðvíksson (1854 – 1913) foi um dos netos de Hans Jonatan, de quem não são conhecidas imagens. (Foto: DR)

Uma equipa de investigadores do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto (i3S) participou num estudo internacional que demonstra o potencial da tecnologia atual na reconstrução de genomas antigos quando não existe material biológico antigo disponível. Em causa está a reconstrução de quase 40% do perfil genético de Hans Jonatan, um afro-descente que há quase 220 anos se refugiou na Islândia. Este estudo, publicado no prestigiada revista Nature Genetics e resultado de um exercício notável de genética inversa, prova aquilo que em teoria a genética forense permite e que, muitas vezes, é retratado em séries de ficção.

Para construir o «puzzle» genérico de Hans Jonatan, os investigadores identificaram todos os possíveis fragmentos de ADN de origem africana nos genomas de 182 dos seus descendentes atuais. A partir do encaixe desses fragmentos foi então possível reconstruir sequências mais longas e similares à do ascendente antigo.

Como explica Luísa Pereira, membro da equipa e líder do grupo de investigação de Genetic Diversity do i3S, “com a passagem de gerações, os descendentes do Hans têm mais fragmentos islandeses e os fragmentos africanos vão ficando mais pequenos e espalhados aleatoriamente nos genomas dos vários descendentes”. Isto acontece porque o ADN de dois progenitores vai recombinando nos descendentes e, no caso dos descendentes de Hans, a contribuição de ancestrais islandeses que foram sendo adicionados a cada nova mistura, em cada geração, aumentou até chegar à descendência atual.

Luísa Prreira é líder do grupo de investigação de Genetic Diversity do i3S. (Foto: DR)

Segundo os registos genealógicos islandeses, existem 788 descendentes de Hans Jonatan atualmente, quase 216 anos depois da sua fuga ao cativeiro. “Dificilmente conseguiríamos outro caso tão perfeitamente isolado como este para testar modelos de genética forense reversa”, afirma Luísa Pereira, para quem o isolamento da Islândia e a homogeneidade genética fazem deste caso um excelente “tubo de ensaio”.

Na verdade, este estudo genético só foi possível porque, como afirma Luísa Pereira, “os registos genealógicos da Islândia são extraordinários, permitindo a fácil identificação dos ascendentes e descendentes ao longo de inúmeras gerações”. Importante foi também o contributo da DeCODE Genetics, empresa biofarmacêutica de afiliação dos principais autores do artigo, e que, desde 1996, está a caracterizar o genoma de uma parte considerável da população islandesa. Deste trabalho resultou já a recolha de dados genéticos de mais de 160 mil participantes voluntários, ou seja, mais de metade da população adulta islandesa.

No caso da equipa do i3S, a escolha para integrar o projeto EUROTAST, – juntamente com investigadores da Islândia,  França e do Benin – teve como base a reconhecida experiência dos invetigadores da U.POrto no estudo dos genomas africanos. Um contributo que acabou por permitir ir além daquilo que os registos islandeses permitiam: a mãe de Hans, Emilia Regina, descendia de africanos capturados algures entre a Nigéria e os Camarões. «Uma ascendência muito provável e previsível», afirma Luísa Pereira, «uma vez que, como demonstrámos em trabalhos anteriores, a maioria do cativos que seguiram para as plantações no novo mundo têm origem essa região de África».

Mas quem é afinal Hans Jonatan?

Hans Jonatan foi o elemento central de um dos mais notáveis casos da história da escravatura na Europa. Um afrodescendente que no início do séc. XIX é condenado na Dinamarca, país onde a escravatura havia sido abolida, a retornar às colónias e a regressar à qualidade de escravo. A peculiaridade da história foi largamente contada em livro e em documentário após a descoberta de provas documentais que atestavam o seu paradeiro na Islândia, após a fuga.

A mãe de Hans, Emilia Regina, nasceu escrava nas colónias dinamarquesas do Caribe, na plantação da família Schimmelmann. Suspeita-se que Hans seria filho de um dinamarquês com a escrava Emilia. Ambos, mãe e filho, seguiram para Copenhaga com os seus proprietários após uma fase de decadência da plantação da família, em 1789. Já na Dinamarca, Hans acaba por se juntar ao exército na guerra contra Napoleão, da qual recebe honras do exército dinamarquês. Essas distinções de nada lhe valeram quanto ao seu estatuto de escravo. Em 1802, ele acaba por ser o epicentro de um controverso caso judicial na Dinamarca, país onde a escravatura tinha sido abolida. Hans afirmava-se um homem livre, mas o juiz responsável do caso sentenciou o seu retorno às colónias como escravo da família Schimmelmann, onde a escravatura ainda era legal. Com 17 anos, escapa ao jugo e perde-se-lhe o rasto. Só em 1990 se descobriram novas peças da saga de Jonatan, desta feita nos registos Islandeses.  O jovem aventureiro refugiara-se nessa ilha remota, levando uma vida de agricultor, pai de três filhos dos quais dois sobreviveram até à idade adulta. É deles que descendem os 788 islandeses visados do estudo. Desses, 182 permitiram reconstruir a história genómica de Jonatan com clareza.

Sabe-se muito pouco sobre como Hans Jonatan terá sido recebido pelos islandeses, cuja maioria nunca teria visto um afrodescendente antes da sua chegada. Alguns autores consideram ser provável uma ampla aceitação de Hans na comunidade, uma vez que os seus dois filhos foram pessoas respeitadas na Islândia. Esta ideia também é corroborada pelos dados biológicos do estudo agora publicado, pois fica demonstrado que esta linhagem “exótica” conseguiu manter-se numa sociedade extremamente homogénea e bastante isolada como a islandesa.

Imaginar alguém de origem marcadamente africana a vaguear pela Islândia de 1802, a fundar família, deixando filhos perfeitamente integrados na comunidade, leva-nos a um cenário improvável. Mas a genética assim o comprova.