coelho

Investigadores divulgaram pela primeira vez o genoma completamente sequenciado do coelho. (Foto: freeimages)

Um prima pelo tom acastanhado, porte atarracado e pela cabeça estreita que usa para evitar os indesejáveis encontros com os seres humanos. Já o outro chama a atenção pelas orelhas compridas, olhos salientes e pela cabeça redonda e bochechas gorduchas que exibe orgulhosamente nas fotografias de família. Um é selvagem e o outro é doméstico, são geneticamente incompatíveis, mas nem sempre foi assim. Na verdade, é no encontro entre o ying e o yang do coelho que se desenha um trabalho pioneiro desenvolvido por uma equipa de cientistas do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto (CIBIO-InBIO-UP), que promete ajudar a responder a alguns dos grandes mistérios no campo da biologia evolutiva.

Já lá vamos às páginas das revistas Science e PLOS Genetics, onde o trabalho ganhou projeção nos últimos tempos. Mas antes, rumamos às casas e bosques da Península Ibérica que têm inspirado os estudos de Miguel Carneiro sobre a origem e evolução do coelho , quer na sua forma domesticada, quer na das subespécies selvagens que hibridam de forma natural um pouco por todo o mundo. “O coelho é um modelo excecional para responder a várias questões de interesse geral em biologia evolutiva”, apresenta o investigador do CIBIO-UP. Além disso “está distribuído por todo o mundo numa diversidade enorme de habitats. Esta riquíssima história natural oferece oportunidades únicas para responder a múltiplas questões de elevado interesse científico”. Entre elas, as duas grandes questões colocadas por Charles Darwin: como surgem e evoluem as espécies quando se consideram processos de seleção natural e de seleção artificial.

Foi com esses enigmas em mente que o cientista portuense, em colaboração com outros investigadores do CIBIO-UP e da Faculdade de Ciências da U.Porto (FCUP), do Instituto Max-Planck (Alemanha) o Broad Institute do MIT e Harvard (EUA) e a Universidade de Uppsala (Suécia), procurou desvendar os mecanismos que permitem explicar como foi possível domesticar o coelho selvagem. Pelo caminho fizeram história ao divulgar pela primeira vez o genoma completamente sequenciado do coelho.

Publicado em setembro na revista Science, o artigo demonstra “que a transformação de um animal selvagem num animal doméstico resulta da modificação de uma diversidade de genes ao nível do cérebro e do sistema nervoso e que influenciam de forma incontornável o comportamento. Estamos, portanto, perante resultados com fortes implicações ao nível das neurociências”, aponta Miguel Carneiro.

Será possível que o exemplo sirva também aos humanos? Nuno Ferrand, professor da FCUP e um dos autores do artigo, acredita que sim: “É surpreendente verificar que, de entre os genes particularmente afetados pelo processo de domesticação do coelho, existe um forte enriquecimento de genes envolvidos no desenvolvimento do cérebro e do sistema nervoso. Ora, é muito provável que uma diversidade idêntica de variantes génicas que afetam este tipo de órgãos ocorra em populações humanas, e que isso contribua para as diferenças que vemos ao nível de personalidade e comportamento”, explica o investigador.

Estas descobertas foram entretanto reforçadas num outro artigo publicado na revista PLOS Genetics, no qual se explica o processo através do qual se formam novas espécies. Usando como exemplo as populações de coelho Europeu existentes na Península Ibérica, os investigadores tiraram partido “de duas subespécies que se encontram nos estágios iniciais de isolamento reprodutivo (condição necessária para que as espécies sigam então trajetórias independentes), para “identificar genes associados à reduzida capacidade de reprodução e sobrevivência nos animais híbridos”.

Enquanto a história natural acontece “lá fora”, Miguel Carneiro, primeiro autor dos dois artigos, promete continuar a desvendar os mistérios da evolução com a ajuda dos coelhos ibéricos. “O que é fascinante é que estas zonas hibridas podem ser vistas como experiências laboratoriais que decorrem ao longo de centenas ou milhares de anos, e em que as diferentes combinações génicas são testadas diariamente por seleção natural”, atesta. Desafios, esses, não faltam: “Apesar de todos os dias constatarmos a diversidade dos organismos que nos rodeiam, ainda carecemos de uma compreensão sistemática acerca de como estas espécies se originam, evoluem, e acabam a seguir trajetórias evolutivas independentes”.